quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Estômago

arte de duy huynh

"Eram os únicos passageiros no vagão pobre, de terceira classe. Como a fumaça da locomotiva continuasse entrando pela janela, a menina levantou-se e pôs em seu lugar os únicos objetos que levavam: uma sacola de plástico com coisas de comer e um ramo de flores embrulhado em papel de jornal. Sentou-se no banco oposto, longe da janela, de frente para a mãe. Ambas vestiam um luto rigoroso e pobre. A menina tinha doze anos e era a primeira vez que viajava. A mulher parecia velha demais para ser sua mãe, por causa das veias azuis nas pálpebras e do corpo pequeno, flácido e sem formas, em um vestido que parecia uma batina. Viajava com a coluna vertebral firmemente apoiada contra o espaldar do assento, segurando no colo com as duas mãos uma bolsa de verniz desbotado. (...) O trem não voltou a acelerar. Parou em dois povoados iguais, com casas de madeira pintadas de cores vivas. A mulher inclinou a cabeça e começou a cochilar. A menina tirou os sapatos. Depois foi ao sanitário para botar água no ramo de folhas mortas."
GG Márquez ("os funerais da mamãe grande") 

"Tudo é uma eterna repetição. O que já foi de novo será... Pelo menos essa é a sabedoria do Eclesiastes. Conta-se que durante a segunda guerra mundial, na divisa entre Suíça e Alemanha, estavam duas guarnições militares: a alemã, do lado da Alemanha e a suíça, do lado da Suíça. Os soldados nazistas resolveram dar um presente aos suíços. Enviaram-lhes uma caixa própria de presentes. Quando os guarda suíços a abriram estava cheia de cocô alemão... Os suíços resolveram retribuir o presente. Quando os alemães abriram a caixa lá estava um lindo queijo, enorme, amarelo, perfumado, e um bilhetinho: “Continuemos assim a nos presentear com aquilo que temos de melhor...” Pulo da fronteira entre Suíça e Alemanha para Araxá, onde viveu Dona Beja... Ela era odiada por todas as mulheres honestas do lugar. Estas, movidas pelo pecado verde, a inveja. enviaram-lhe um presente: uma caixa cheia de bosta de cavalo. Ela retribuiu: enviou flores a todas as mulheres que, segundo o seu conhecimento, eram as “presenteadoras”, com um bilhetinho: “Cada um presenteia com aquilo que tem de melhor...” Mudam os tempos e os lugares, mas a liturgia é a mesma."
Rubem Alves ("ostra feliz não faz pérola")

" A família Lispector não estava entre os primeiros refugiados da cidade. Tchechelnik tinha sido fundada por refugiados, e deve até mesmo o seu nome a eles. Reza a lenda que a raiz da palavra Tchechelnik, kaçan lik, é a palavra turca para refugiado. (...) Um elaborado sistema de túneis sob as construções fornecia abrigo. Havia três corredores principais interconectados, alguns deles cavados cinco metros abaixo do chão e com dois metros de altura. A maioria das casas, e quase todas as de judeus, tinha passagens secretas para as catacumbas no subsolo. Em tempos de paz eram usadas para estocar víveres; durante as invasões, a cidade inteira desaparecia debaixo da terra, a população inteira, inclusive os animais. Os engenheiros do sistema tiveram o cuidado de dar acesso a um rio subterrâneo, onde os bichos podiam matar a sede."
Benjamin Moser ( na biografia "clarice,")

"Ela deverá estar próxima à árvore da poesia, que é a eternidade vestida com as folhas verdes do tempo."
R.S Thomas
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Palavra Roubada

“Ficar com muita gente é fácil”, diz um amigo meu, com pouco mais de 25 anos. “Difícil é achar alguém especial”.
Faz algum tempo que tivemos essa conversa. Ele tentava me explicar por que, em meio a tantas garotas bonitas, a tantas baladas e viagens, ele não se decidia a namorar.
Ele não disse que estava sobrando mulher. Não disse que seria um desperdício escolher apenas uma. Não falou em aproveitar a juventude ou o momento e nem alegou que teria dificuldade em escolher. Disse apenas que é difícil achar alguém especial.
Na hora, parado com ele na porta do elevador, aquilo me pareceu apenas uma desculpa para quem, afinal, está curtindo a abundância. Foi depois que eu vim a pensar que existe mesmo gente especial, e que é difícil topar com uma delas.
Claro, o mundo está cheio de gente bonita. Também há pessoas disponíveis para quase tudo, de sexo a asa delta. Para encontrar gente animada, basta ir ao bar, descobrir a balada, chegar na festa quando estiver bombando. Se você não for muito feio ou muito chato, vai se dar bem. Se você for jovem e bonita, vai ter possibilidade de escolher. Pode-se viver assim por muito tempo, experimentando, trocando de gente sem muita dor e quase sem culpa, descobrindo prazeres e sensações que, no passado, estariam proibidos, especialmente às mulheres.
Mas talvez isso tudo não seja suficiente.
Talvez seja preciso, para sentir-se realmente vivo, um tipo de sensação que não se obtém apenas trocando de parceiro ou de parceira toda semana. Talvez seja preciso, depois de algum tempo na farra, ficar apaixonado. Na verdade, ficar apaixonado pode ser aquilo que nós procuramos o tempo inteiro – mas isso, diria o meu jovem amigo, exige alguém especial.
Desde que ele usou essa fatídica expressão, eu fiquei pensando, mesmo contra a minha vontade, sobre o que seria alguém especial, e ainda não encontrei uma resposta satisfatória. Provavelmente porque ela não existe.
Você certamente já passou pela sensação engraçada de ouvir um amigo explicando, incansavelmente, por que aquela garota por quem ele está apaixonado é a mulher mais linda e mais encantadora do mundo – sem que você perceba, nela, nada de especial. OK, a garota é bonitinha. OK, o sotaque dela é charmoso. Mas, quem ouvisse ele falando, acharia que está namorando a irmã gêmea da Mila Kunis. Para ele ela é única e quase sobrenatural, e isso basta.
Disso se deduz, eu acho, que a pessoa especial é aquela que nos faz sentir especial.
Tenho uma amiga que anda apaixonada por um sujeito que eu, com a melhor boa vontade, só consigo achar um coxinha. Mas o tal rapaz, que parece que nasceu no cartório, faz com que ela se sinta a mulher mais sensual e mais arrebatada do planeta. É uma química aparentemente inexplicável entre um furacão e um copo de água mineral sem gás, mas que parece funcionar maravilhosamente. Ela, linda e selvagem como um puma da montanha, escolheu o cara que toma banho engravatado, entre tantos outros que se ofereciam, por que ele a faz sentir-se de um modo que ninguém mais faz. E isso basta.
É preciso admitir que há gente que parece especial para todo mundo. Não estou falando de atores e atrizes ou qualquer dessas celebridades que colonizam as nossas fantasias sexuais como cupins. Falo de gente normal extremamente sedutora. Isso existe, entre homens e entre mulheres. São aquelas pessoas com quem todo mundo quer ficar. Aquelas por quem um número desproporcional de seres humanos é apaixonado. Essas pessoas existem, estão em toda parte, circulam entre nós provocando suspiros e viradas de pescoço, mas não acho que sejam a resposta aos desejos de cada um de nós. Claro, todo mundo quer uma chance de ficar com uma pessoa dessas. Mas, quando acontece, não é exatamente aquilo que se imaginava. Você pode descobrir que a pessoa que todo mundo acha especial não é especial para você.
Da minha parte, tendo pensado um pouco, acho que a pessoa especial é aquela que enche a minha vida. Ela é a resposta às minhas ansiedades. Ela me dá aquilo que eu nem sei que eu preciso – às vezes é paz, outras vezes confusão. Eu tenho certeza que ela é linda por que não consigo deixar de olhá-la. Tenho certeza que é a pessoa mais sensual do mundo, uma vez que eu não consigo tirar as mãos dela. Certamente é brilhante, já que ela fala e eu babo. E, claro, a mulher mais engraçada do mundo, pois me faz rir o tempo inteiro. Tem também um senso de humor inteligentíssimo, visto que adora as minhas piadas. Com ela eu viajo, durmo, como, transo e até brigo bem. Ela extrai o melhor e o pior de mim, faz com que eu me sinta inteiro.
Deve ser isso que o meu amigo tinha em mente quando se referia a alguém especial. Se for isso vale a pena. As pessoas que passam na nossa vida são importantes, mas, de vez em quando, alguém tem de cavar um buraco bem fundo e ficar. Essas são especiais e não são fáceis de achar. "
Ivan Martins, colunista da revista Época
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Capitoso som
dica da fal! =)

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Minicontos sobre a falta
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"Mais um café?" "Por favor." E essa resposta se repetiria por infindas vezes, desde que a oferta fosse feita por ela. Ela possuia uma beleza de poucas (e para poucos) e seu charme nada distraído era desconcertante. E ele, já tendo o desconcerto como casa, sentava na terceira mesa da direita e passava seus fins de dia observando o passar daquela mulher. Pra lá, pra cá. Comia tortas, beliscava omeletes e bebia chás de odores suspeitos com calma e entrega invejáveis. Passeava pelo cardápio com dedicação, como se passeasse por ela. Ela era sempre leve, chamava-o pelo nome e, vez ou outra, fazia um comentário ácido e saía rindo com o cantinho da boca. Leve e ácida. E ele queria tudo: a fala, o riso, a pressa, o toque, a impaciência, o beijo, a rispidez, a meninice, o vigor, o confronto, o conforto, o cheiro, o cheiro, o cheiro. Mas lhe faltava a primeira palavra. Todo dia, antes de abrir a porta do café, ele olhava para seu reflexo no vidro e dizia pra si mesmo um claro "hoje" . A palavra primeira entrava com ele mas não saía da boca para chegar até ela. Nunca era hoje. Aí ele ficava ali, vendo ela passar, repontuando as letras do cardápio e escrevendo contos longos sobre guerreiros desbravadores. Escrevia tantas para achar a uma que lhe faltava.

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Ela comeu só metade da maçã. Não precisava se fartar. Naquela hora, precisava de quase nada. Não "entoou hinos", não chorou rios, não gritou farpas. Não precisava se fartar. Apenas abraçou seu luto em pequenina reclusão. Sofria um pouco pelo perdido, um pouco pelo tempo cedo, um pouco pelo que queria. Mas sofria mesmo por conhecer de data aquele talento que ela tinha. Sabia que sabia esquecer como ninguém. Sabia bem que sabia viver sem. E por isso sofria.
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