segunda-feira, 31 de outubro de 2011

historinha

era uma vez um homem barbudo e uma mulher dentuça.
o homem barbudo olhou para a mulher dentuça.
a mulher dentuça olhou para o homem barbudo.
eles disseram: "- opa."

fim
assim
=)
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Rádio Plutão
diz amém.

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sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Rádio Plutão
repete o que é bom.
=)

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Minicontos sobre a falta
os derradeiros, creio eu.
 
¨¨
A manhã de sexta era pra começar como de praxe: corpo dormido que acorda e vai cedo para o trabalho. Mas a noite anterior tinha sido desemplanada em som bom de Recife, dança pouca mas plena, cachaça baiana e tempestividades madrugueiras. Aí ele rompeu. Passou a manhã na cama e só saiu de casa para o almoço. A paisagem de fora era a mesma mas alguma sutileza provava que era não. O seco da grama, a copa das árvores, o reflexo dos carros e até mesmo o céu pareciam cobertos por uma camada espessa de mel. O sol intenso daquela hora trazia um tempero espalhado de que ele quase tinha esquecido que gostava. É que há ausências que são assim, de tão simples só se manifestam quando acabam. E só ali, diante dela, já finda, ele percebeu que sentia falta da cor do meio dia.
 
¨¨
Carregava por ele um amor declarado e um ódio secreto. E tentava de certa forma conter os dois. Quando perto, derretia melada, se esvaia em água e sua devoção até doía. Já pelas costas era a pior das inimigas - a silenciosa - que muito pensa e nada faz. Até fazer. O ódio era consequência das frases de farpa e da acidez que ela tinha em si. O amor vinha de todo o resto e era muito. Muito que era muito mas virava ar sem balão nas horas plenas de ausência. Parecia que ela só sabia amar na presença. Não sabia se lhe faltava crença nele ou crença ponto. Na verdade, nem sabia ao certo o que lhe faltava.
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terça-feira, 25 de outubro de 2011

Terça rima com

momento de claridade, de duy huynh

a noite bem dormida, a oração na cama, as cigarras em trance cantante, o leite quente com mel, os melindres da CF, o batom quase no fim, a garganta arranhada, a bota, o céu com sol enfim, a lembrança boa do olho dele na claridade primeira, CCR no carro, a mesma cadeira, a dança dos dedos no teclado, a manga azedinha intervalesca, o feriado mudado, a imagem de duy e o trecho da anônima que não sai da cabeça.
 
"No sótão, outra vez. Ele não é minha casa. Não tenho mais casa nenhuma. Claro que a peça mobiliada que me foi tirada pelos bombardeios também não era minha. Ainda assim, ao longo de seis anos eu a preenchi com a atmosfera de minha vida e com meus livros e quadros e centenas de coisas que acumulamos em torno de nós. Minha estrela do mar do último verão pacífico em Norderney. A tapeçaria que Gerd me trouxe da Pérsia, o despertador amassado, fotos, cartas antigas, a cítara, minhas moedas de doze países, o tricô começado - todas as recordações, peles, cascas, sedimentos, os cálidos trastes dos anos vividos.
Agora que tudo se foi e só me resta uma mala de mão com roupas, me sinto nua e leve. Por não ter mais nada, tudo me pertence."
Anônima ( em "Anônima, uma mulher em Berlim")
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segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Tec tec
Que prático é o mundo interconectado. Uma beleza. Até a rede cair e você ficar mais de hora olhando pendências urgentes saltitando na sua mesa sem você poder fazer nada. A rede cai, a impressora fecha a boca e eu vou à loucura. Numa dessas, na ânsia de fazer os processos seguirem seu caminho sem mais atrasos, liguei para o depósito e perguntei ao responsável se eles não tinham uma máquina de escrever véia encoxtada (com x mesmo) por ali. Eu poderia datilografar (ói só que antigo) o que não precisasse de numeração do sistema e desenrolar metade do imbróglio. A resposta que eu recebi, em meio a risos, foi "tê tem, minha senhora, mas não funciona não". Bem, tentei.
Um colega de trabalho ouviu meu telefonema e me contou que tinha achado uma máquina de escrever em perfeitas condições na garagem do pai e levou a dita para casa para mostrar ao seu filho de 7 anos, que nunca tinha visto uma daquelas. Sem explicar nada, colocou o papel e saiu batendo as letras sonoras com gosto nostálgicobom de um passado distante. O filho, espantado, soltou um "UAU, pai! Que moderno esse teclado que já vem com impressora! E nem precisa de monitor!". Achei graça do comentário e pus-me a pensar sobre a questão do velho/novo, sobre os valores que atribuímos às coisas e pessoas tendo como base a idade que elas carregam. Nada de surpreendente não, tanto que nem vou postar aqui o que escrevi a respeito do trem. Mas sei que a historinha boba e o comentário do filho me trouxeram uma sensação boa, uma leveza. Acho bonito isso, a multiplicidade de interpretação e entendimento das coisas se manifestando assim, de forma tão simples e espontânea. E a riqueza desses possíveis e válidos olhares mil me fez sentir dentro de um caleidoscópio, sendo eu um quadradinho desse mosaico dinâmico. Bom fazer parte disso: desse rodar, desse mudar de cor... E embalada pelo quasetorpor levefrebril das mudanças também em mim, perdi o fio da meada e não sei mais como terminar esse textinho. Sorry. Fica assim sem fim. =). Um beijo e ótima segunda aos que passarem por aqui.
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Pra tudo na vida tem uma música do Chico
quanto chico é muito chico mesmo?
AMO.

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Por que eu amo a Fal
na rua, dando continuidade...

"Prezado senhor H., aqui estamos nós, mais uma vez.
Como vai?
Ontem cheguei em casa tão cansada, com tanto calor. Eu me sentia suja e um pouco alheia, como se esta vida não fosse minha e eu não estivesse realmente aqui.
O senhor já se sentiu assim? É uma sensação estranha e terrível, ainda que libertadora. Alcancei o prédio, venci o corredor, virei a chave na fechadura e meu coração quase parou. Antes mesmo de ter aberto a porta completamente, com o canto dos olhos vi uma sombra cor de vinho no chão. E soube que era o senhor. Ou melhor, a sua carta. Soube assim que a vi. Joguei minhas coisas no chão e apanhei o envelope. Olavo aproveitou meu susto para escapar, mas só notei isso vários minutos depois, quando o senhor Issamu, um senhorzinho aposentado que vive no apartamento 14, veio com o gato no colo, espantado por ver minha porta aberta, por ver minhas coisas espalhadas, chave para fora da fechadura e eu, um joelho no chão, lendo sua carta completamente esquecida de tudo o mais.
O senhor me pergunta se eu sei o que é sentir medo. Claro que sei. Foi o que eu senti ao ver sua carta esperando por mim no chão. Não resisti a agir como uma maluca e rasguei o envelope imediatamente, com medo. Muito medo.
Mas o senhor, agindo muito além de minhas expectativas, não apenas respondeu à minha carta, como não me censurou. Pelo que me sinto grata e aliviada.
Ontem foi um dia terrível no trabalho. Muitos gritos, muita confusão, longas horas de pé. E poder chegar em casa e ler uma carta escrita especialmente para mim foi um prazer. Gostei de ter esse breve vislumbre sobre seu cotidiano. Temos algo em comum: apesar de trabalhar cercada de muitas, muitas pessoas, passo o dia todo em silêncio. Quando chego ao trabalho, a equipe já está envolvida em seus afazeres (o escritor carioca-mineiro Eduardo Almeida Reis os chama de ‘quifazeres’) e fico num lugar separado do resto do pessoal. É certo que há um entra e sai constante no meu canto de trabalho, mas estamos todos ocupados demais para o que quer que seja, mesmo acenos de cabeça e um eventual “Oi, tá boa?”. E, quando saio, uma nova equipe ainda trabalha frenética, ocupadíssima, não há despedidas e nem “Bom descanso”. Também por isso, sua carta foi quase uma voz falando comigo no apartamento vazio.
Depois de ler suas palavras uma vez, levantei-me do chão, ralhei com o gatinho, recolhi minhas coisas, coloquei uma lasanha pronta no micro-ondas e tomei banho. Depois jantei, vi televisão e li sua carta mais duas ou três vezes antes de dormir. Dormi bem, sem sonhos e, como hoje não fui trabalhar, acordei mais tarde do que de costume e agora respondo sua carta, que vai para o correio logo mais. Gostei imenso da imagem que o senhor usou, dizendo que ao acordar, encontrou meu envelope de olhos abertos.
Sinto muito que meu envelope verde o tenha feito chorar. Sinto, realmente. E mais, sinto muito que o senhor não consiga alcançar sua Beatriz. É uma pena. Há algo que eu possa fazer? Alguém que eu possa procurar?
Os dias aqui seguem sufocantes e terrivelmente longos. Espero que o frio aí esteja terrível, paralisante.
Receba meu abraço,
Helena Nucci

P.S. Senhor H., seus envelopes são sempre cor de vinho. Sempre. Será que sou daltônica? Existem mulheres daltônicas? Não sei. Amanhã farei uma experiência e depois conto o resultado. Mas aqui, na minha mão, salvo engano muito profundo, há um envelope cor de vinho, com sua letra pequena e regular, seu endereço e o meu. O senhor me diz que compra envelopes brancos, sempre na mesma quantidade, sempre no mesmo lugar, e acredito no senhor. Mas os envelopes que me chegam às mãos são cor de vinho. Creia.
Até já.
H."
Fal Azevedo
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quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Hã, Biloute?

cantinho visto da rede

¨¨ Meio como a maré mas só que sem ciclos. não sei explicar.
¨¨ Bonito ver clareza e atitude combinadas. E ver o quanto essa combinação pode provocar efeitos tão positivos em espaço tão curto de tempo. Em todos nós. Muito bonito.
¨¨ Quando minha ficha finalmente caiu, fui aos meus arquivos e mandei a palavra "insônia" lá no buscar. Fiquei impressionada com a quantidade absurda de vezes que ela apareceu. O complicado é que é comum um problema tomar corpo e passar a ser realmente visto como tal  somente quando a gente chega no nosso limite, quando o trem já está todo descarrilhado. Mas tudo bem. Sempre há tempo. =). E sempre, benzadeus, o tempo novo vem com cavalaria : chegaram agulhas e gotas e leituras e alimento (agora eu vejo o qto faltava!) e carinhos de quem está perto e longeperto e a mão que segura a minha segurou ainda mais firme até eu estar tranquila o suficiente para "receber alta". rs! (Obrigada, amor.) E sei que agora durmo. Mudei a rotina, estou tentando fazer uma coisa de cada vez e, aos poucos, sinto a mente e o corpo sendo abastecidos com a energia que precisam para funcionarem bem. Muito bom simsim. E para que os dias de mau humor e impaciência viscerais não passem batidos, posto lá embaixo um ou outro mimimi que escrevi tomada pelo azedume. ui. =)
¨¨ Mulherada lá da academia tá com uma ondinha de usar meias gigantes esticadas por cima da calça, bem na linha "cascatinha". Funcionalidade? Estética? Não entendo ponto.
¨¨ Esse fim de semana será de "20 hrs Pedalando" e mais uma vez o DV na Trilha estará lá queimando coxa... faça chuva ou faça sol. Iêi! Só espero que São Pedro seja camarada e não mande chuva TÃO forte quanto a do ano passado...ave cruz. rosí : shhhhhhhhhhh, please! hehehe.
¨¨ Nina e Paulo, o blogger não me deixa escrever as respostas aos comentários deixados por vcs, ói que audácia! Ele trava na escolha do perfil e não permite a publicação. Aff. Vou continuar tentando e se não der certo eu respondo p'cs em off,ok? Brigadinha por estarem sempre por aqui! beijo! =) 
¨¨ Vámininex e Coquinepipocante agora estão ainda mais pertinho! Bonito isso. Beijos amarelos e saudosos p'cs, queridas!
¨¨ rosí, volta logo, sua insuportável!!! Aff ²!!!
¨¨ Pequi... quando os dois furam, pode-se dizer que ninguém furou? rs! Valeu pela força, viu? E sigamos tentando... =)
¨¨ Beijos de chuva e um ótimo dia a todos!
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Rádio Plutão
não é de marte. tb. =)

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Mememe/Mimimi, Potêiro/Potáto

Pense em um saco. Pensou? Agora vá enchendo o dito com coisa qualquer da sua escolha até ele ficar completamente abarrotado. Aí, quando parecer não caber mais nada, NADA, pegue cinco mãozadas de estopa e enfie lá dentro. Tá assim.

Já consigo me lembrar daqueles dias de entrega. Friso o e o consigo porque até algumas semanas atrás a entrega parecia não morar nem mais na memória. Por que não ser sincera? Por que não falar da acidez que impera? Preciso falar dela pra que fique claro por que é difícil sarar uns machucados. Eu, eu no todo, até que me regenero fácil, fico bem. Mas um machucado ou outro fica. Fica e recebe ácido por gotejamento. A razão, tolinha, trata da superfície e se engana na melhora certeira. A emoção, sagaz, é ácida e mina a cura em pequenas doses diárias. E é tão ridiculamente bizarro que dá vontade de largar tudo, juntar-me a um circo freak show itinerante e vender ingresso a 2 pila cada. Nunca mais teria problemas financeiros. Certeza. Financeiros, pelos menos.

Dia desses eu, que me vanglorio por não carregar as mazelas variadas da pré-menstruação, fui acusada de ter tido um ataque de TPM. Dei razão e pedi desculpas, reconhecendo de pronto que meu piti tinha sido infundado e exagerado. Shame on me. Mas acontece que hoje é hoje e eu tô aqui cultivando maus pensamentos com zelo maternal e mostrando os dentes (que não são singelos, devo dizer) até pro grampeador. E é o meio do ciclo. Explicações, alguém?

Soltei aquele mimimi básico: que tô reclamuda, irritada demais, vendo defeito em tudo e com vontade de sair desse corpitcho que (não?) me pertence. Aí ela me contou das dívidas do cartão de crédito, do filho "mal educado" (o coração de mãe foi que escolheu o adjetivo, porque o moleque é da linha "filho do meio de lúcifer), do marido que não lava uma colher, da "que vida sexual? aquilo?" e perguntou se eu topava brincar de freaky friday e trocar com ela por um dia. Agradeci a gentileza da oferta, recolhi minha insignificância e disse que tava até feliz por só ter motivos pra reclamar de mim mesma.  A gente deu pala de rir e depois chorou um pouquinho. Porque é de chorar mesmo.
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quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Flor e marimbondo
Ela não era como as outras meninas. A começar pelos olhos, que tinham um castanho incomum e davam a quem os via a sensação de melado sendo derramado. E mais que isso, ela comia flores. As flores eram carregadas nos bolsos e comidas de pétala em pétala ou em mordidas encorpadas. Assim o fazia pela casa, pela escola, pelos parquinhos, causando em outros uma espécie de espanto nadadoce. Nadadoce. E ainda mais que isso, ela dominava a esquecida arte de cuspir marimbondos, mas isso é prosa para uma outra história.

Pois sim que um dia um marimbondo que não era um dos seus lhe picou a ponta da língua. A dor que doía vermelha, latejante, e a solidão do inchaço mudaram algo nela. Ela perdeu o gosto pelas flores, parou de comê-las. Perdeu o que tinha de raro e passou a parecer mais parecida para os olhos de fora. Mas longe disso, o que ela fez de fato foi usar a sensiblilidade nova pra fazer mais. O simples toque na textura aveludada trazia mais que alimento. Ela aprendeu, assim, a ler as flores com a língua. E o encanto e a riqueza daquela leitura uma fizeram com que ela aprendesse mais. Aprendeu a ler o cheiro dos ares. Aprendeu a ler as cores das coisas. Aprendeu a ler a temperatura dos pensamentos abstratos. Aprendeu a ler o medo na fala dos outros. Aprendeu a ler olhos e bocas. Aprendeu a ler tudo que ninguém lê. E seguiu de tudo lendo, sem alardes, para ser sem-par às escondidas, ao menos um pouco livre dos grandes espantos.

Ela é amiga minha. Me aparece em sonhos. E me explica ou quase as coisas que eu não consigo entender.
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segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Por que amo a fal
na rua, dando sequência =)

"Senhora Helena
A senhora já sentiu medo? A senhora já sentiu as pernas tremerem e o coração acelerar e as mãos buscarem apoio em qualquer coisa que seja para se evitar uma queda? A senhora conhece a sensação de ter o corpo ausente e o chão sumir e os pêlos se eriçarem e o mundo girar e a garganta se fechar, como se na garganta houvesse um balão, uma bola, uma pedra, um tijolo, e o ar lhe faltar e passar diante dos seus olhos todos os instantes de sua vida, os momentos vividos, os imaginados, os não acontecidos? Já lhe aconteceu alguma vez de as frases não ditas e os sons não escutados e as músicas nunca cantadas ecoarem na sua mente, nos seus ouvidos, em suas mãos, nas paredes, nos móveis, e de repente tudo ser engolido pelo silêncio mais profundo?
Foi isso que senti, senhora Helena, quando, ao chegar em casa na última sexta-feira, vi, na caixa dos correios, a ponta verde do envelope com sua carta. Senti medo. Senti medo e sentei na escada, em frente à caixa dos correios, e chorei.
Não sou homem de rituais, senhora Helena. Não creio em quase nada. Nem em Deus, nem nos homens, nem nas instituições, nem na dignidade do trabalho, nem na Democracia, nem na mídia, nem na sacrossanta família, nem na alegria. Mas há sete anos sigo, com fervor quase religioso, um único ritual: olhar diariamente três vezes a caixa dos correios e ver se há alguma carta, algum telegrama, alguma coisa vinda de Beatriz. Esperar um sinal de Beatriz é minha religião. Como, bebo, ando, me visto, tomo banho, escovo os dentes, durmo, acordo, respiro, para esperar um sinal de Beatriz. Não creio em quase nada, mas a crença de que, um dia, Beatriz responderá uma carta minha, me mantém de pé. Esperar um sinal de Beatriz é minha profissão de fé. E, na última sexta-feira, a ponta verde do envelope na caixa de La Poste me fez sentir o maior dos pavores. Porque eu sabia que não era uma carta de Beatriz. Não creio em sinais nem em metafísica nem em nada, mas por algum motivo algo em mim gritava que não era Beatriz que escrevia. E sentei e chorei. De medo. Porque ninguém me escreve, senhora Helena. Há sete anos não recebo nenhuma carta que não sejam as cobranças de impostos e contas de luz e gás e água e cartas tolas de empresas que não conheço me oferecendo coisas que não quero, nem créditos dos quais não preciso. Não há nenhum motivo para receber uma carta em envelope verde. Não há, ou não havia, qualquer possibilidade de receber uma carta em um envelope verde que não fosse algo relacionado a Beatriz, mas certamente não seria dela.
Passei bom tempo, dois ou três ou quinze ou noventa dias, não sei precisar bem, sentado na escada até recuperar um pouco do pouco que ainda resta de mim, e tomei coragem e peguei o envelope verde e respirei profundamente oito ou nove vezes e abri os olhos para confirmar que era para mim a carta, e de quem ela vinha. A sua carta.
Moro no quarto andar, senhora Helena, e aqui, nesta cidade, é comum os edifícios não terem elevador. Me arrastei quatro andares acima, senhora Helena, com seu envelope verde nas mãos. E a cada degrau o envelope ficava mais pesado. E quatro andares acima ele pesava tanto que eu já perdia o fôlego e o arrastava pelo chão, e ao entrar em casa o envelope verde arranhava o piso e precisei parar por alguns minutos e reunir forças para colocá-lo em cima do sofá que é também a minha cama e minha mesa e meu guarda-roupas. Faz muito frio em Paris nesta época, senhora Helena, mas eu suava e ao conseguir, com muito esforço, colocar o envelope no sofá, meus braços doíam como se houvesse participado de uma competição de halterofilismo. Sou magro, senhora Helena, e não tenho braços de halterofilista. Toda a minha atividade física se resume a descer quatro andares de manhã e ir à boulangerie do outro lado da rua comprar uma baguette e água e uma caixa de fromage La Vache Qui Rit, e subir quatro andares de escada, depois descer os mesmos quatro andares à tarde e ir à caixa dos correios pela segunda vez no dia (já que na volta da ida matinal à boulangerie já dou a primeira olhada na caixa dos correios), subir novamente os infernais quatro andares e, à noite, descer mais uma vez os malditos quatro andares e tomar um chá no café do Micko (um polaco, eslovaco ou coisa que o valha, a única pessoa com quem troco algumas palavras todos os dias, um bonsoir aqui, um s´il vous plais ali e um au revoir esporádico quando a temperatura está acima de cinco graus) e depois olhar a caixa dos correios e subir os centoevinteeoitomil desgraçados degraus pela última vez. Não faço nada além disso que me possibilite ter preparo físico suficiente para ser um halterofilista, mesmo que amador. Então, senhora Helena, o envelope verde que chegou a pesar meia tonelada ao fim de quatro andares ficou ali, em cima do sofá-cama-mesa-guarda-roupas, e eu sentei no chão, e ficamos olhando um para o outro. E não sei se foram três minutos ou doze horas, mas sei que por um bom tempo vi Beatriz sorrindo e vi Beatriz sair do banho e vi Beatriz com o rosto cheio de lágrimas e os olhos gritando au revoir e vi Beatriz mexendo o nariz de modo encantador enquanto cantava Love of My Life e vi Beatriz fazendo uma performance de Freddy Mercury e segurando uma vassoura como se fosse um microfone e vi Beatriz nua, e não vi mais nada, porque dormi ali, com o envelope verde de meia tonelada ressonando em sono profundo em meu sofá-cama-mesa-guarda-roupas.
Quando acordei, senhora Helena, o envelope verde continuava lá, imóvel e de olhos abertos porém um pouco sonolento por conta da pouca luz que as manhãs de inverno derramam sobre Paris. E eu já tinha a coragem suficiente para pegar o envelope verde, que a essa altura já tinha voltado a pesar alguns poucos gramas, e abri-lo. Já não sentia medo. Apenas curiosidade.
Não a julguei, senhora Helena. Não julgo ninguém. Não julgo nada. Não recrimino nada. Não questiono nada, nem tampouco duvido de nada. Se há algo em que acredito, e são bem poucas as coisas em que acredito, e, aqui entre nós, nem sei exatamente se acredito que acredito no que quer que seja, é na absoluta impossibilidade de que qualquer julgamento seja justo. O que é a justiça, senhora Helena? Não existe a justiça. A justiça é uma conveniência. Não há justiça, a justiça é um delírio. Não a julguei, senhora Helena. A senhora não violou minha intimidade. Não a possuo. Não há assassinato sem cadáver. Para haver intimidade a ser invadida é preciso que haja alguma intimidade com algo ou alguém. Não houve crime, pela simples falta de vítima. Não sou íntimo de nada, senhora Helena. Não há íntimo em mim.
Na verdade, senhora Helena, senti alívio. Depois de gigantesco pavor, alívio. Não havia na sua carta qualquer sinal de que Beatriz esteja doente, morta, casada ou em risco de morte iminente, o que, em qualquer dos casos, seria mais ou menos a mesma coisa. Não havia em sua carta nenhum sinal de que tenha visto Beatriz, ou de que conheça Beatriz, ou de que seja portadora de boas ou más ou de ainda piores notícias de Beatriz. E, se isso pode parecer um contrassenso, é bom que seja assim. Porque, assim, mantenho viva minha única crença: a de que, um dia, Beatriz irá me enviar uma carta, um bilhete, um telegrama. Ela está em algum lugar, senhora Helena. Eu sei disso. Eu sei disso. Eu sei que ela, um dia, vai mandar uma carta, um bilhete, um telegrama, que não virá em envelope verde. Eu sei que, um dia, ela virá. E vai sorrir, e cantar, e dançar até as paredes pedirem pausa para descansar. E não haverá mais frio em Paris, e Paris voltará a ser a Cidade Luz, e a Torre Eiffel, nesse dia, irá piscar não por cinco minutos mas por vinte e quatro horas todo dia sem parar, para festejar a volta de Beatriz e Paris irá aparecer em todos os telejornais de todo o mundo como o lugar mais feliz do mundo e em todas as fotos dos milhões de turistas haverá um brilho diferente e que não irá aparecer em nenhuma foto feita em qualquer outro lugar do mundo, senhora Helena. Eu sei de tudo isso.
Perdoe a carta extensa. E perdoe por incomodá-la durante tanto tempo com minha correspondência. Sinceramente, não sei como foi parar em seu endereço. Não sei. Espero que compreenda.
Se possível, volte a escrever. Agora sei que os envelopes verdes são seus. Não sentirei mais medoUm abraço,
H.

P.S.: A senhora diz que meus envelopes tem cor de vinho. Nunca enviei nada em envelopes cor de vinho, senhora Helena. Nunca. Compro sempre um pacote com dez envelopes brancos, na Gilbert Jeune. Brancos, lisos, sem cor, sem faixas vermelhas nem azuis, sem “par avion”. Um euro e noventa centavos, dez envelopes. Sempre, brancos. Não sei explicar. Não sei."
Fal azevedo
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quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Minicontos sobre a falta
 
¨¨
Ela começou pelo carro. Procurou no porta-malas, embaixo dos bancos, nos cantos. Já no quarto revirou gavetas e checou entre as roupas sobrepostas nos cabides. Um por um. Olhou dentro de livros, de caixinhas, embaixo do tênis de corrida, atrás do pote mosaico, da moringa de barro. E seguiu assim cômodo por cômodo. Na textura do shampoo, no cheiro dos potes de tempero, no barulho inquieto dos talheres. Sem sucesso. Tinha perdido do peito o amor que tinha e cansada de procurar em si resolveu tentar achá-lo do lado de fora. Sem sucesso. Caiu exausta no chão da cozinha, chorando a falta do amor que não mais sentia.
 
¨¨
Ele via a si nos olhos dela. Não tinham intimidades nem afinidades e mal se falavam. O contato era pouco e quase seco. Mas tinham no úmido fresco dos olhos o mesmo humor e a mesma dor. Reconheciam-se, em silêncio, como comuns. Não queriam mais que aquilo, não faziam nem sequer questão de aquilo ser. Naquele pouco faltava nada.
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segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Simsim

Ele abriu os olhos e ela já estava acesa, lendo bukowski do outro lado da cama. Ele permaneceu imóvel, mantendo a respiração do sono, no intuito de não acordá-la da leitura. (Ele tinha um jeito de cuidar dela nas coisas em que ela nem sabia que poderia ou precisaria ser cuidada.) E ficaram assim por um tempo, até o momento em que ela fechou o livro e abriu um sorriso gigante. "Bom dia, amor.", disse antes do beijo nadacurtoquaselongo. Ela também beijou cada um dos olhos e espalhou a ponta do nariz pelo pescoço dele. (Ela tinha um jeito de dar carinho que ele nem sabia que poderia ser dado ou recebido.) Ele contou o que tinha feito e estudado na noite anterior, enquanto ela já dormia, e ela listou os possíveis (desem)planos para aquele dia. E ficaram ali e nada decidiram e falaram em filmar um curta e escrever um conto e riram feito bobos e lembraram coisas da infância e falaram da vontade da viagem e contaram a grana nos dedos e acharam graça da falta da cortina e da possível super valorização dos apartamentos do prédio da frente e beijaram e encharcaram o lençol sem nenhum apego à secura da cama e conversaram mais um tanto e dormiram de novo, no mais leve e profundo dos cansaços. Quando ela despertou, olhou para ele ali, ao lado, e perguntou a si mesma em voz muda: "ele existe?". E ele, como se tivesse escutado, acordou e perguntou a ela, só que em claro e bom tom: "você existe?".
Sim.
Sim.
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Rádio Plutão
ama itamar.
e canta assim... =)

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