Rádio Plutão
quarta-feira, 30 de abril de 2025
terça-feira, 29 de abril de 2025
Trecho esparso sobre o amor
Ele falou o que me falou meio de canto mas em uma altura que não sei se quem estava perto chegou a ouvir. Só sei que disse o que disse e eu só entendi de fato quando saquei que música era aquela. Demorei uns segundos para voltar do susto da explicitude e disfarcei verbalmente. Mal, por sinal. Pensei ali se ele, como eu, é adepto da ousadia planejada e trouxe consigo a frase pronta de casa. Talvez. Ele ficou diferente: postura de satisfação, orgulhoso do feito, e olho baixo de claro arrependimento. Ambivalente. Eu fiz a egípcia (quero crer) e também fiquei diferente: lisonjeada pela certeza pouco surpresa de me ver parte do imaginário dele e incomodada por saber que esse é um terreno que tenho por regra não pisar. Ambivalente. Também. Ideal e nada ideal. ...........................................
Rádio Plutão
segunda-feira, 28 de abril de 2025
Por que eu amo a Fal
"Alguém a faz sentir-se viva quando alcançada pela luz?
A moça da canção do ABBA (pra mim vale a da Meryl) declara que, quando banhada pelas luzes dos holofotes (gostou do banhada?) não se sentirá triste porque alguém está em algum lugar da multidão e o olhar desse alguém a faz feliz. Ela canta por vaidade artística, ela canta para pagar as contas, mas ela canta para uma pessoa em especial. Mas uma pessoa especial, uma pessoa especial no meio da multidão, faz com que nossa cantorinha triste se sinta viva. Uma pessoa especial em meio à multidão.
É de se imaginar que seja recíproco, porque afinal de contas, a pessoa especial no meio da multidão está ali, a enfrentar la muchedumbre para assistir à apresentação da triste cantorinha banhada pelas luzes. Mas me entenda: é de se imaginar. Não é certeza. A tal da pessoa especial em meio à multidão pode estar no show por tédio. A pessoa especial em meio à multidão não tinha nada pra fazer e a triste cantorinha mandou um ingresso de presente — a tal da pessoa especial pode ser do tipo que não paga pra ver os shows da cantorinha. A tal da pessoa especial em meio à multidão pode até ter levado a pessoa especial dela, a pessoa que realmente ama, pro show da cantorinha triste. Por fim, a pessoa especial pode ter dito à cantorinha que ia ao show e não foi não. Vai ver, a pessoa especial em meio à multidão acha a cantorinha extremamente chata, mas, ao mesmo tempo, ter uma cantorinha triste extremamente chata ligando no meio da noite de Glasgow faz qualquer um, até a pessoa especial em meio à multidão que não dá a mínima, se sentir especial. E quem não quer se sentir especial?
Enfim, sobre a pessoa especial em meio à multidão pouco podemos dizer. Geralmente a pessoa especial em meio à multidão não está nem aí para o que a cantorinha triste, você ou eu sentimos.
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Voltemos para a cantorinha.
Ela se declara menos triste, pois a pessoa especial em meio à multidão estará atenta, ouvindo seus trinados.
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Nós que escrevemos, escrevemos para alguém: nossos leitores (não escrevemos para nossa família, não escrevemos para nossos amigos). Escrevemos para os nossos leitores. Quem são esses caras?
Se é que eles existem, digo.
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Perdi um amigo, me machuquei e tomei um susto quase ao mesmo tempo. De longe, perder o amigo foi a pior das situações.
Esse era um amigo que não apenas gostava de me ler — a única coisa que faço na vida. Eu gostava imenso de escrever para ele e de escrever em qualquer lugar sabendo que ele ia me ler.
A morte dele me fez — ainda me faz, é tudo tão recente — inventariar com quem diabos estou falando e para quem diabos quero falar. Quando viramos escritores, somos ensinados, ensinamos a nós mesmos que devemos viver no mode Roberto Carlos – eu quero ter um milhão de amigos.
Não discuto com quem me diz Sim, quero alcançar as mais apartadas almas com o fulgor das minhas palavras.
Nesses dias, mais ou menos de molho, tou fazendo um inventário tão interessante quanto perigoso: estou escrevendo para quem? Não para que, mas quem? Pouco antes do meu amigo morrer, uma imensa escritora me disse que estava dando uma limada em quem a lê. Que está selecionando, na maciota, quem a lê e quando. Na hora só concordei, mas quinze dias depois, nunca uma declaração fez tanto sentido.
Para quem estou escrevendo? Não por que, mas para quem?
Daqui donde estou, embalada por questionamentos vários, tristezinhas miúdas, tristezona enorme, alguma decepção e partinhas soltas de ressentimento e surpresa, me pergunto se faz qualquer diferença ser lida por este e não por aquele, aliás, se faz qualquer diferença ser lida, aliás, se faz qualquer diferença deitar sobre o papel as palavrinhas minhas.
Não tenho resposta, não tenho solução, não vou recomendar a quem quer que seja escrever, não escrever, ler ou não, pensar ou não sobre isso tudo.
Mas a verdade é que a ideia de dar a última aula às dezoito horas, fechar o computador e comer e assistir séries até a hora de dormir tem me parecido muito sedutora. A desistência é sempre sedutora. E algumas coisas simplesmente querem que você desista delas."
Fal Vitiello de Azevedo
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" e nesse dia branco"
*** Aquele nozinho aqui do lado direito, que pega pescoço e ombro em fisgada e dói rígido, cuja terminologia científica é maternidade. Difícil para um cacete. Especialmente a tarefa hercúlea de viver batendo o pé para deixar claro que você, mãe, também é gente e não apenas função. Mais uma área da vida em que a gente tem que bater o pé para deixar claro que é gente. Na boa, difícil para um cacete.
*** Segunda rima com silêncio e algum respiro, mesmo que descompassado. E hoje, especialmente, gostaria que durasse meses.
*** O episódio 2 de The Last of us me lembrou o que me fez abandonar Game of Thrones. Mas tenho aqui pra mim que seguirei.
*** Sonhei esta noite que estava lendo um livro que não quero ler. Isso. Ponto. Só isso. O mais inútil sonho desses meus quase 49 anos. Valendo aqui da premissa (questionável) de que os sonhos têm alguma utilidade.
*** No excelente "Canção para ninar menino grande", Conceição Evaristo usa várias vezes "cria" como o passado de crer. "Ela cria na chegada do dia em que...". E fiquei viajando na ponte com o "cria" de criar. Pois acreditar, crer, é algo que criamos na nossa mente e nos nossos sentidos. Crer é uma criação imagética. Crer É criar. Por isso "cria", como usa Evaristo, vai além, diz mais, se estende para o campo macio do poético. Bonito isso.
sexta-feira, 25 de abril de 2025
quarta-feira, 23 de abril de 2025
"nada ficou intacto"
* Esse foi o pedaço de frase que me pegou quando tocou "Boa Noite" do Djavan no rádio do carro, de manhã, voltando pra casa. Ele fala ali do efeito de um amor arrebatador que chega mas eu senti em outro lugar: quando acontecimentos em série trazem uma espécie de crise que parece afetar os aspectos mais variados da vida. "Nada ficou intacto". Nada. Tudo mexido, repensado, rasgado, desfeito, refeito, redirecionado, mudado. Nada ficou intacto. É quase uma outra existência.
* Falzuca quer lançar a campanha "Isso não é amor, é desidratação" e eu digo amém, sista. Porque, né? Há casos em que só pode ser mente e corpo alterados por alguma desordem vital, na boa. rs
* A mulher que sou/estou vira e mexe (leia-se: quase diariamente) topa com a mulher que fui. Topada topada mesmo, na linha dedo mindinho no pé da mesa. Rola choque, grito, palavrão e leva um cadinho de tempo pra parar de doer, pra entender e eu lembrar que é o que acontece com quem muda sempre as coisas de lugar. Parte do processo em curso, mutante.
* Invasor bárbaro, encusiasta, negócio fechado, família adams, malásia, correntinha, pavão, focaccia, em comum. Nada não, só listando referências.
* Aí que o estado quase sólido de desesperança não era tão sólido assim. Foi se deixando permear por simplicidades. Por prosa e café sem pressa com Daia, por pé na grama e livro e sol e ducha gelada de faltar ar no parque, por Pri rompendo com planos para estar junto, por almoço que faz ponte para noite em casa de amigos onde se dança Bowie e Prince na sala e se canta Gal como se Gal fosse na mesa e se bebe gin em taça que parece um balde, por janta improvisada e risos precisos na casa de Paulinha, por White Lotus maratonada, por Alabama Shakes nos ouvidos. Por quietude. Por Conceição Evaristo e sua escrita phoda. Por áudios de rir e chorar da Fal. Pelo que vive. Pelo que se vive.
quinta-feira, 17 de abril de 2025
PORTARIA CGR Nº 1, DE 17 DE ABRIL DE 2025
Atribui novo significado a estar bem.
A PRESIDENTE DO COMITÊ GERAL DE RESSIGNIFICAÇÕES , no uso da competência que lhe foi subdelegada pela Portaria MTA nº 1, de 20 de maio de 2010, e o que consta no Processo Dossiê nº 130776.130776/1976-13, RESOLVE:
Art. 1º Instituir em caráter temporário e em regime de urgência o novo "bem". O novo "bem" transita em chão duro sem o uso de qualquer tipo de amortecimento e carrega doses consideráveis de seca aceitação. Possui coloração inidentificável, aspecto opaco mas, curiosamente, no fundo é transparente. Prescinde de pausa, chora pouco e mantém alto desempenho na execução das tarefas diárias. O novo "bem" rasga esperanças tolas, infantis, e se fortalece na convicção plena de que tudo não vai ficar bem. Abomina toda e qualquer forma de silêncio e musica (sim, do verbo musicar) todos os espaços ocupáveis. Dá merecido descanso a Noga Erez e abarca variações de algo por ele classificado (talvez equivocadamente) como punk rock. Canta alto todo o "Horses" da Patti Smith, dança sentado duas lado B do Talking Heads e explora Santigold. Ainda assim, o novo "bem" desconhece a graça das coisas e segue cru. Não apresenta características típicas do antigo bem, mas responde que está bem quando perguntam tudo bem. O novo "bem" não se sente só, tem amparo logístico e afetivo e valerá até que portaria posterior o torne sem efeito.
Art. 2º Este ato entra em vigor na data de sua publicação.
Izabela F. Cosenza
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Rádio Plutão
segunda-feira, 14 de abril de 2025
"como dois e dois são cinco"
Chove um tanto lá fora. Chuva bonita, encorpada, contínua, com um ou outro som tímido de trovão. Chuva que faz uma a cor do céu. Um longo e único branco acinzentado. E eu, sem cor aqui dentro, não consigo me prender a nada. Como se mente e corpo estivessem sintonizados nessa frequência vaga, sem chiado. Trabalho sem trabalhar, leio sem ler, dirijo sem dirigir, malho sem malhar, como sem comer. E não, não estou afundada em um poço de tristeza ou outra emoção qualquer. Não é isso. Há dor, mas não é isso. Estou desligada, em off, atravessando os passos do dia. Um a um. Eu ausente. Preciso dar um jeito de descer com a Margot. Minha capa de chuva verde, guarda-chuvão e a capa de chuva rosa bonitinha e meio ridícula dela. Preciso trabalhar até as 19:30. Chuva de matérias aqui. Preciso não errar. Tipo de ato, seção, data de publicação. Básico, Izabela. Preciso higienizar as folhas para a salada, ralar cenouras. Preciso continuar nesse silêncio perene e vago, sem chiado. Branco acinzentado. Duas mortes em cinco dias. E eu perdi a cor.
sexta-feira, 11 de abril de 2025
"quero te dizer nenhum segredo"
* Manhã, aula de bike indoor, no telão competição feminina na Bélgica e uma imagem aérea mostra uma capela cercada de verde por todos os lados com o escrito "Chapel of Steenbergen" no canto da tela. Por um segundo escapei sem pensar para outro tempo, outros tantos lugares e tanto que quase senti aquele cheiro específico. Quase. Mas não.
* O que chega para ser escrito desconhece o tempo do relógio. E se chega no meio da madrugada traz consigo um imperativo de urgência, pois há chances abissais de ele cair no esquecimento se não cair no papel naquela exata hora. Nessa noite foi assim. Lá pelas 4 me veio o texto prontinho: início, caminho longo e encadeado, pausas, as repetições que imito da Fal (oi, Falzuca), fim que retoma o começo e, se não me engano, até um toque de pretenso humor no meio de uma prosa sobre luto. Não sentei para escrever e ele se foi provavelmente sem volta, o que tem tudo a ver com tudo. O que tem tudo a ver com o (des)embaraço do tempo.
* Alguém da vizinhança tem praticado sax nos fins das manhãs. E eu já me pego dando bom dia pro som. Bonito isso.
* Focaccia. E não falo aqui de pão. É meio que nome ou estado das coisas.
* Noga Erez faz folia em minha vida desde 2023 e tenho pra mim que estou compensando por todo o pop que não ouvi nos anos 90 (Alanis conta como pop, produção?). E tenho ouvido só e somente ela nos últimos dias. Tio Jorge morreu na quarta-feira. O Tio Jorge. Sigo um tanto desorientada desde então, sem conseguir colocar pra dentro ou pra fora, e Noga, de alguma forma, me ritma. Especialmente no aquário.