quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Trecho esparso sobre o amor

Eu converso contigo. Ocasionalmente. Acho súbito, não entendo bem o por que, mas converso com você. Assim: prosas eventuais, imaginárias, com pausas reticentes nas frases em que eu diria seu nome. Eu não conheço seu nome. Conheço sua capa, sua voz e sua vibe que passa, transita perto. Conheço seus bons dias, como você me olha e o efeito do seu olho no meu. Isso conheço. E tem algo ali, um chamativo, uma intensidade presente e, não sei, talvez contida. Não sei. Um algo que talvez toque algo adiado em mim.

domingo, 16 de fevereiro de 2025

Pele

Bonito o caráter expansivo da arte. O filme fala do livro que cita o espetáculo que menciona a autora que escreve sobre o quadro que te lembra a série na qual rolou aquele som, aquele som. É meio o poema do Drummond - "João que amava Teresa que amava Raimundo..." - e também na "Quadrilha" da arte os elementos diversos seguem entrando e se movimentando pela nossa história. 

Ouvi Letuce pela primeira vez em uma peça de teatro. Tocou "Potência" e eu fiquei simplesmente alucinada, memorizando partes para depois ir sedenta descobrir (e amar) que banda era aquela. Descobri Elizabeth Bishop lendo um artigo sobre Drummond e é dela meu poema favorito na vida. Daí ontem aconteceu algo do tipo. Assistia ao excelente, "Boa sorte, Leo Grande" quando entrou em cena uma cena de dança (ahh, as cenas de dança) e lá fui eu quase me desconectar do filme para mergulhar no som. Voltei a cena várias vezes, me levantei, dancei junto até sentir bem o que havia para sentir ali. Fiquei em dúvida se já conhecia a música porque a conhecia ou se só parecia ser conhecida pelo jeito macio de encaixar em mim. Viajei sem pressa naquela onda prazerosa até que enfim reconheci a voz. Brittany. Dois minutos de busca pelos sons do Alabama Shakes e lá estava ela , Always alright, me esperando. Veio certeira ao meu encontro para fazer casa no meu repeat. Através do filme. Acho isso bonito demais, esse encadeamento que a arte faz, esse juntar colorido de missangas no fio de um colar (oi, Mia Couto). Colar que desconhece fim e vai dando voltas festivas no pescoço, se espalhando, ocupando espaços do corpo. A arte compondo minha pele. Não me canso de achar bonito.

Ouça aqui

P.S. : Just in case you walk by here, there is a US tour going on, DC in september. Do yourself and the universe a favor and go, por favor. Obrigada, de nada. ;)


quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Impecável
"Tudo em linha reta
tudo combinado, previsto, controlado Dizia nunca ter sentido nenhuma inveja
Não se permitia nenhuma gula 
e engolia só a ira 
Preguiça, jamais 
Luxúria, nem pensar 
E de tanto temer o fogo 
congelou todos seus desejos 
Com vergonha do orgulho 
rebaixou suas alegrias
e o sorriso alheio lhe ofendia 
Mas nós, pecadores, que você tanto repudia e deseja 
te convidamos a brincar conosco nesse lamaçal 
Vem 
Talvez tenha chegado a hora de não ser mais tão impecável." 
Geni Nuñez

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Conversê

I: O Irineu existe???? 😱😱😱 Chocada

F: eu tava quase morta naquela padoca

 I: Ele nem sonha que é uma celebridade, tadico...

F: né, eu me pergunto se tenho direito de separar aquele homem da celebridade que ele merece

I: hahaha! Toda uma vida paralela, poética, cheia de melindres. E ele lá, só comprando pão.

F: ele tava tomando uma cynar

eram 7h15 da manhã

terno branco com camiseta branca

cynar

no balcão

eu sei que era ele

I: Joguei cynar no Google e GARGALHEI

Só pode ser ele, falzuquitcha

F: eu sei que era

I: E a gente só sonha em chegar lá, né? Desfilando elegância e cynar na padoca às 7:15 da manhã 

Algo a se sonhar

Um quase propósito na vida

Hahaha

Até lá você escreve sobre fins de mundos e eu escrevo trechos esparsos sobre o amor inspirados em 1- caras que eu não conheço e 2- caras que eu preferia não ter conhecido. Até a gente, enfim, pedir pro seu Manoel dois aperitivos de alcachofra no balcão da padoca. É um plano.

F: HAHAHAHAHAH ❤️ ❤️ liamo

I: Te amo, meu bem ♥️

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

 Com elastano

Rigidez. Quem cresceu em famílias que tinham o rigor como cartão de visita sabe bem o quanto esse tópico é sensível se escolhemos olhar para ele com o cuidado e a reflexão que merece. Por que se por um lado o rigor pode abarcar algum conforto, trazer regras firmes e com elas algum senso de segurança, por outro, parece inescapável que ele caia na intransigência e acabe flertando com a arbitrariedade.

Sei que regras são importantes e que viver a vida sem elas, solta na mão do palhaço (adoro essa expressão), pode nos afundar num caos completo. O lance, então, a meu ver, é se engajar no exercício hercúleo de ir buscando um equilíbrio entre o "dado como dado" e o "ó, pode ser diferente". Aí que dia desses flexibilizei uma regrinha minha (calcada em embasamento prático e pessoal, devo dizer. rs) e me senti bem feliz com a minha atitude. Ahh, por que deu certo, saiu como esperado, Izabela? Não. Êxito zero na empreitada, meu camarada. Uai, feliz "casdiquê" então? Por que eu me questionei, eu não encarei o diferente com olhos de estranheza e repulsa imediata. Eu trouxe o diferente para conversar com o que eu tinha como "certo". E, nessa conversa, eu vi brecha para maleabilidade, brotou um "vai que..." e me permiti agir fora do que tinha preestabelecido. O resultado não foi bom, mas a experiência foi boa. E não só pelo precioso exercício em si, de refletir e olhar além (oi, Nina), mas porque em outras situações já vividas flexibilizar deu super certo e boto fé que em outras que virão também dará. E está tudo bem se der ruim vez ou outra. O que eu não quero é cair no engessamento. Na rigidez que, no fim das contas, nos cega. Cega tirando nosso poder de escolha consciente e, acredito, nos deixando mais propensos a julgar negativamente o diferente, só por que não se encaixar no nosso jeito. A rigidez joga a gente no automático. E o automático é quase burro, fechado para mudanças. Fico genuinamente feliz por eu ter me aberto, ter me arriscado. E termino esse texto um tanto nada organizado citando os adoradíssimos Porcas Borboletas. Sigo sem medo de me molhar.

" Eu me fodi

   Tranquilamente

   Tô nem aí, eu sigo em frente

   Porque agora nessa vida

   Eu pretendo melhorar

   Se chover eu tomo chuva

   Com vontade de molhar."

"Infelizmente" é som delícia da banda Porcas Borboletas.

https://open.spotify.com/track/3lZi9haOBepJfyKrxUMTn8?si=VGeNdB-lRkWP0EWvijQLZA


quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

It takes two to tango


Adoro essa expressão. E não só pela sonoridade, esse encadeamento poético de Ts e o que faz a boca ao pronunciá-los assim seguidinhos. Adoro porque ela traz algo da dinâmica da dança para a dinâmica da vida. Pois assim como no tango, relacionar-se requer movimento, sintonia, presença. Requer incorporar (literalmente) o som e ter alguma dose de confiança para se mover de acordo com as esperadas mas imprevistas tempestades e calmarias, encaixes e desencaixes. Lembro bem dos meus tempos de dança de salão que, para as outras aulas -forró, salsa, samba, bolero- bastavam sapatos e roupas confortáveis. Para o tango não. Para o tango era salto, saia, collant, cabelo em coque, postura e parceria. Eram comuns exercícios com os olhos fechados ou vendados e danças inteiras com as luzes apagadas, no quase completo escuro. Era um exercício de entrega e presença. Sintonia. Mesmo que cada qual com seu passo diverso. E não vejo como estar presente se a dança não te move de fato. Se a música não te apetece, o ritmo não conversa contigo e os passos não te prendem em liberdade pelo salão, não há presença. Há desconforto. E ninguém tem que gostar da mesma dança ou querer dançar. Há aí uma infinidade de ritmos outros, possibilidades outras que podem te fazer mais sentido. Inclusive danças deliciosas que prescindem de parceria. Mas dança de dançar junto é com dois presentes. It takes two to tango. E às vezes na vida a gente é tão pouco atento que dança sozinho estando com outro. Ou seguem os dois em desgosto e desgaste tentando achar ritmo comum onde não existe mais. O entendimento do que é amor, amizade, respeito, responsabilidade, liberdade, ética relacional pode ser completamente diverso e naturalmente não vai encaixar em passo. Não há dança. São pés arrastados em tropeços contínuos. O tango é complexo de se dançar e é divino. Relacionar-se também. Mas precisa de dois. It takes two to tango. Hoje consigo enxergar isso com clareza e me sinto em treinamento no exercício de trazer essa percepção para a prática. Mas confesso que tenho pés e mãos e corpo inteiro com cicatrizes e uma ou outra ferida ainda aberta de tanto que me arrastei e me contorci pelo salão. Me machucava tentando encaixe em dança ruim pra mim ou tentando convencer o outro a dançar, só para garantir a ilusão de ser um par. Não mais. Talvez só agora eu esteja realmente aprendendo a dançar.


quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Primeira pessoa


Eu

Eu eu eu eu

Eu eu eu eu eu eu

Eu eu eu

Eu eu

Eu eu eu eu 

Eu eu eu

Eu eu eu eu eu

Eu


Isso não é poema.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

 Oníricos n°2


Entrei pela porta sem tocar a campainha e não me espantei com a quantidade de gente. Era a sua casa, mas não a casa que eu conheço. Da sala fui para uma varanda comprida que não existe e, a partir daí, lembro só de uma coisa ou outra. De brisa fresca, cortinas vermelhas, luz de fim do dia, burburinho gostoso de encontro festivo e de um bolo de chocolate no centro da mesa. Imaginei ser o aniversário da sua cria, pelo tanto considerável de criança espalhada ali. Até que você segurou meu braço, polegar em movimento, e disse meio de lado sem me olhar no rosto: "não vai embora, tá". Também sem olhar, mas sorrindo, respondi um macio "talvez". E ali ficou clara a sua questão em relação a quem eu fui e a minha tranquilidade em não ser mais. Acordei já fora do sonho e, ao abrir a rede social, lá estava você: vela soprada, bolo, comemorando seu aniversário na noite anterior.


 Hã, biloute?


*** Eu, que sigo firme me equivocando em relação às coisas, tinha pra mim que a blogosfera era agora esse campo em ruínas, inabitado, de folhas secas em movimento e vento uivante. Ledo engano. Há aqui gente que lê, que escreve e segue explorando as variadas trilhas palavreiras. Surpresa boa. Caiu por terra meu propósito primeiro de fazer daqui um diarinho secreto, mas tá valendo.

*** "Chega de passar a mão na cabeça de quem te sacaneia", Barão Vermelho cantou a pedra nos idos anos 80. A gente cantava inteirinha, dançava nas festinhas, colocava no LP pra rodar, mas só entendeu como possibilidade real e trouxe pra prática lá pelos 45 de idade. E quando eu digo "a gente", eu digo "eu".

*** Ch. talvez será lembrado com o cara que chamou Nietzsche de juvenil. E não por que eu concorde ou discorde (faz uma vida que eu não leio o distinto senhor), nem por que o comentário abriu toda uma prosa sobre como nós, indivíduos e nação, temos dificuldades em lidar com criticidades, mas por que a mí me gustan as pequenas ousadias, esses quase atrevimentos.

*** Geni Nuñez, no podcast O Estranho Familiar, brilha, brilha, brilha e brilha na sua fala. E termina lendo um poema dela que pelamordadeusa. Anotei no caderninho e leio todo dia. Todo dia. Putz que divino.

*** "O hábito torna suportáveis até as coisas assustadoras". Questões de português pra concurso sabem dos paranauês.

*** Escrevendo hã, biloute no MTA e ouvindo Cícero. Parece 2010 all over again, mas né não, né? :)

sábado, 1 de fevereiro de 2025

 "E pareceres contínuo"


Assisti a esse vídeo do Eddie Vedder em que ele lê um trecho escrito por Damien Echols antes de cantar Bob Dylan. E sim, o tempo não existe. Mas existe. Assim como o vento (eita, ói "O tempo e o vento" aí), que não possui um corpo visível mas a gente o reconhece no contato com as folhas que voam, no frescor que bate na nuca, no cabelo que bagunça como que por pequeninas mãos; o tempo também se faz material nas coisas. Eu o vejo imprimindo linhas no meu rosto, nas crianças que voltam diferentes a cada 4 dias com o pai, na mãe que virou minha filha. Vejo o tempo palpável na construção dos afetos, em abraços e beijos que se transformam. Também o vejo na concretude dos silêncios, no sentido de falta que vai se descolando de nós e some, mas nunca em um passe de mágica. Leva tempo. O tempo existe. E não existe, Damien tem muita razão, o tempo é só truque. Só existe o agora. Porque o que foi e o que virá são fugidios e só o agora é real no nosso campo de ação. Agora.


"Uma coisa que eu adoraria ter é uma ampulheta ou uma coleção delas. Algumas que medem minutos, outras que medem horas, outras que medem o dia inteiro. E relógios de pêndulo e relógios de bolso. O que mais gosto sobre o tempo é que ele não é real, está todo na cabeça. Claro que é um truque útil se você quer encontrar alguém em um lugar específico do universo para um chá ou um café, mas é tudo que ele é, um truque. Não existe passado, ele só existe na memória. Não existe futuro, ele existe apenas na nossa imaginação. Se nossos relógios fossem verdadeiramente precisos, a única coisa que eles diriam é "agora"."

Damien Echols 

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

 Sem ponto

Falzuca monotemática, obcecada pela finitude e eu imersa no emaranhado dos meios, dos (des)contínuos processos, dos acordes em arpejo. Menos por curiosidade e mais por questão de sobrevivência, meus olhos têm aberto holofotes para o entre das coisas. E aí tenho achado prazer. Tanto pela descoberta de entendimentos novos, ritmos outros, quanto por, na prática, me colocar mais entregue ao caminhar do que ao fim programado. Sinto que tira peso e julgamento dos processos incômodos e traz frescor e tempero aos macios. Mas não é algo automático. "Ticar" etapas cumpridas para chegar na meta pretendida é tão automático para quase tudo que é um exercício ir rompendo com esse modus operandi. Exercício às vezes confuso, às vezes cansativo, mas que tem feito sentido. Pra mim. Quem diria que nadar contra minha própria maré me traria o gosto de me deixar levar livre na correnteza. 

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

 Oníricos n° 1

Você apareceu bem no finalzinho e achei estranho. Mal te encontro na vida e de repente te vejo em sonho. Você se ajeitou em meio a sacolas de supermercado para me dar um abraço de oi, sorriu largo e conversamos sobre floradas de mel. Laranjeira, angico, cajuja, café. Outras pessoas chegaram, a prosa mudou de rumo e, não sei como, seu cheiro me veio na ponta dos dedos da mão. Fiquei ali, surpresa, sem saber o que sentir ou dizer. Mas acordei com vontade de escrever.

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

 Corre aqui, Gloria Steinem


Às vezes me pego descrente, bem descrente. Não me abala os ânimos, que continuam a querer e a agir e a me jogar em pensamentos impossíveis (impossíveis porque fora do campo tido como regra, mas não realmente impossíveis). Acredito no voo como meio e fim, mas o prático da vida é mais chão estático do que qualquer outra coisa. Descrente ao perceber ( e essa percepção é só minha?) que mulheres letradas, que se dizem feministas, aplaudem com vigor mulheres que rompem com os padrões de silenciamento e se expõem ao invés de se anularem, desde que seja à distância, da porta pra fora. Pagam pau para a escritora, a jornalista, a ativista, a personalidade que tem a coragem de sair da posição ensinada de "boazinha" e se manifestam com veemência, colocando limites, exigindo respeito. Aplaudem. Desde que seja da porta pra fora. Porque se for alguém próximo, uma irmã, uma amiga, em situação que haja envolvimento, a resposta vai ser choque e não aplauso. As mesmas mulheres que querem se livrar da prisão de ter que agradar o tempo todo, não aceitam a mulher que desagrada. De perto, no pouco que falam, te falam pra "deixar pra lá", deixar que o tempo resolva as coisas (leia-se, passar pano), abafar o que se sente e acredita, tudo em nome do "amor" e da manutenção das coisas como estão. Não se posicionam, não emitem opinião a favor ou contra, ninguém quer se indispor, correndo o risco de também desagradar (esse horror!). Elas acreditam que mulheres devem usar sua voz, erguer a voz (oi, bell hooks), mas se a mulher próxima traz à tona algo difícil de se ouvir, não há aplausos. Na prática, quem quebra a regra do silenciamento dos incômodos, peraí, ousou demais e só merece distância. Aí me pego descrente, me perguntando se a gente está evoluindo de fato ou se é só discurso pra sabe-se lá quem ver. Não sei. Não sei. E me pergunto também por que eu ainda me importo, se tenho clareza da dureza de se bancar e me banco. Eu me banco. Eu perdi o medo do chão. Acontece que não ter mais medo do chão não me livra do impacto da queda. Talvez por isso eu ainda me importe, por causa do impacto, do susto. Mas quero acreditar que, pela repetição que estou certa que virá, uma hora o impacto ganhe ares de pouso. Daí não vou mais me importar.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

 O assovio

Eu assovio alto. E assovio bem o assovio alto. Aprendi sozinha, quando criança, na casa da minha avó em umas férias Monte Carmelo. Eu me sentava naquela janela gigantesca e ficava ali por horas olhando o passar da rua e soprando molhado por entre os dedos. Até que um dia saiu som. Saiu som. E achei tão incrível o contato com aquele som novo, aquele som meu, que fui diversificando o jeito de assoviar, entregue ao misto gostoso de desfio e brincadeira. Só que meu assovio, que me dava prazer, era expressão de alegria, um abano de rabo de cachorro feliz, passou a ser uma questão já na vida adulta. Porque ele não gostava. E tudo bem ele não gostar, era para ser um problema dele e não meu. Mas, né, o QUE não era problema meu? “É muito alto”, “dói os ouvidos”, “você está incomodando os outros”, e por aí vai. Passei a assoviar baixo, a assoviar menos. Comecei a me distanciar dele para assoviar e mesmo assim isso me rendia algum tipo de punição: uma reprimenda, uma cara emburrada, um olhar de reprovação. Meu assovio, essa “pequenez”, virou um peso, bem como outras tantas pequenas enormes coisas em mim e de mim. Eu era um combinado de pesos a ser contido, controlado, “orientado”. Um conjunto de erros meio sem conserto.

Ontem, no parabéns sambado da amiga Carol, assoviei feliz meu contentamento por estar ali com ela. Ela me tocou o braço em sorriso e disse que sempre quis assoviar assim. “Eu te ensino” foi a minha resposta. É bom sentir que fiz as pazes com o meu assovio, tirei dele o peso colocado. Na verdade, já faz um tempo que venho fazendo as pazes com o que é meu, com minha voz, com meus mutantes seres e estares. Já faz tempo também que me permito falar desses issos. E parece ter chegado a hora de trazer essa liberdade para o lugar que mais me toca: a concretude da palavra escrita. Contar por escrito. Enfim.

sábado, 18 de janeiro de 2025

Que me livre

Havia esse leque de coisas que pareciam estar fora do alcance do esquecimento. Tanto que meu empenho nem morava no esquecer, mas em olhar para dentro, olhar ao redor e seguir em frente diferente. E só agora percebo tê-las esquecido, pelo menos em parte, de alguma forma significativa. Mas a verdade inusitada é que preciso delas de tempos em tempos, não mais para dar conta da cor daquela realidade e sim para entender os agoras. "Releia seus escritos", me disse P. naquele dia e, dessa vez, nem precisei reler. Os esquecidos me lembram dos meus porquês. A casa que criei, as escolhas, os tropeços, o sentido das rotinas mutantes. As contradições, a claridade incontestável, o que não sei mais não peitar, o que não alcanço (e nem quero), o que deixo ir. A reação ao que tenta me tirar de mim pelo controle, por vezes com ares bem disfarçados de afeto distraído. E preciso do esquecido para entender. Lembrar do que saí (e continuo saindo) para pisar livre. Eu que me livre. Me livro (nesse duplo sentido). E o que dói é parte menor.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

 Por que eu amo a Fal

"Tormenta

Ninguém pode ser o que você quer que ele ou ela seja, ou o que você precisa. As pessoas são o que são. Talvez elas se encaixem. Talvez não. Talvez você se encaixe. Talvez seja tudo uma grande besteira. Talvez o emprego apareça, ou as suas cutículas parem de doer, ou ele ligue duas, três vezes por semana só para saber como você está. Talvez você finalmente entenda aquele livro estranho, talvez um filme com o Kevin Kline salve você, talvez você se dê conta de coisas muito apavorantes durante uma madrugada muito triste. Talvez a sua alergia misteriosa se manifeste mais violenta do que nunca. Talvez você acabe bebendo vinho rose numa taça linda ou andando num carro sem capota com o Miltão ou num consultório médico recebendo notícias horríveis.

Talvez haja um fim.

Talvez não.

Quando Claudel disse há algo de ausente que me atormenta, ela não se referia só às chances que não alcançava por ser mulher num mundo de homens, ao amante casado que jamais seria dela, ao seu próprio talento (que era imenso). Ela não se referia apenas ao que nunca é o que desejamos ou esperamos de nós mesmos, ao amor, à felicidade, ao tempo, à grana, à liberdade.

Sempre acho que Claudel se referia fundamentalmente a si mesma. Nunca estamos, real e definitivamente. Não de verdade, não sempre, não, não.

O algo de ausente que sempre falta somos, ao fim e ao cabo, nós mesmos. Eu para mim, você para você.

Estamos, nós, minha voz anasalada e irritante, sua voz grave e doce, nossa coragem, nosso mover de mãos, peito, pelos, unhas, lábios e suas pelinhas, dentes e aquele quebradinho do dente, mamilos, unha do dedão, dedos dormentes, boceta, pontas mastigadas do cabelo e olhos que embaçam, estamos, todos, em falta conosco, distantes, meio apagados, meio longe demais, ausentes.

Nunca estamos, nunca estamos o suficiente em meio à tormenta dos dias, das dores, das graças, dos sins.

Nós nos atormentamos a nós mesmos e nos faltamos e nos faltamos."

Fal Azevedo 

domingo, 5 de janeiro de 2025

 "A assinatura de todas as coisas"

Livro. Livro é coisa outra que é livro mas é mais. Porque se expande para além da história no papel, abre esse portal imagético automático e quase inexplicável. O livro dita o escrito e você cria caras, roupas, ruas, movimentos. Inventa sem pensar o tom do diálogo, a voz que fala, o silêncio que ouve. E sente a umidade da gruta, a textura aveludada do musgo, o cheiro na nuca, a angústia e o amor de quem "nem existe". E ri e chora e vira refém da história pra depois ficar meio órfã quando ela acaba. Um livro é mais que uma história contada. E consegue ser ainda mais se se põe a caminhar, ganhar mundo. Aí, quem de novo o lê conhece a leitura de quem já o leu. Não só por traços, grifos ou palavras soltas de canto. Mas por que ali se conecta com idos olhos atentos, com a impressão invisível dos dedos nas folhas, com o barulho do passar das páginas, com as pausas. Há toda uma energia vivida na leitura do outro que chega pra quem agora chegar. E essa beleza, esse encontrar, me toca. Tanto me toca que coloco sem dó meus livros pra girar e esse, a partir de hoje, é seu. Acho justo. Acho justo que você me leve nele, eu estando ali nas quatro vezes que o li. E leva de quebra também outros dez pares de mãos e olhos de gente querida que por ele passou. De alguma forma, quase inexplicável, eu o lerei contigo.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

 Acorde

"Uma discreta insinuação de interesse entre duas pessoas". Essa é uma das definições de flertar que mora no dicionário. Descrição simples de algo que de fato é simples, mas de certa forma complexo. E bem gostoso, sinto eu. Especialmente aquele que segue sem pressa, que não se limita a minutos antes de um beijo na mesa de bar. Falo do flerte que demora a se entender como tal, da dinâmica que vai mudando de jeito. Até que sabe-lá-o-que vira uma chave invisível e você percebe um interesse outro do outro e se olha pra descobrir se há interesse em si. Se sim, começa a dança. Dança que varia em ritmo e sobe em tons. Devagar. E talvez venha daí a complexidade que mencionei, desse movimento que se demora um cadinho na despretensão e desafia imediatismos. Do movimento que degusta o nascer e crescer das vontades ainda no campo da incerteza. Qualquer toque vira marcadamente um toque, o olhar vai aprendendo a se demorar, risos mais soltos, pausas, desconcertos. Pequenos frenesis. É o outro passear a língua pelos lábios enquanto você fala e você, por um instante, se perder no que estava dizendo. Pequeno frenesi. Prazer simples de sem mais acontecer.

Um sol. Um sol suspenso.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

 Poema oração para os dias todos

"De uma maneira ou de outra

é o tempo e a sua desenvoltura

nos proporcionando possibilidades de nos atrevermos

nos refazermos em movimento com o espaço

em pensamento e intuição com o próprio tempo.

É o meu existir em desfile aberto

por entre as existências todas.

É o tempo e a sua desenvoltura

renovando os estados de consciência

através das constantes travessias

das incessantes batalhas

que nos trincam as cascas

nos trocam as peles

amolecem o leito e o peito

e a cada passo fortalecem o coração.

No tempo e no espaço deixo rastros

deixo jeitos, deixo risos, deixo choros,

deixo histórias, deixo glórias, deixo perdas,

deixo sortes gastas e presentes do azar.

Deixo, deixo, deixo e deixo

até que minhas percepções acessem a fenda

um portal, um estreito laço entre as dimensões

onde meu espírito observa-se vívido e vivo

reconhece a si mesmo dentro de um corpo re-habitado

realmado, reamado e desarmado.

Pela resiliência que nos sorri

com a sabedoria dos saltos

e a experiência das quedas."

João Pedreira

segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Acorde

F. , a sábia, me disse numa sexta feira de mês já bem passado que a então "amiga" faria com as outras variações dos absurdos que fez comigo, que era só questão de tempo, que elas aguardassem. Eu duvidei e disse que não, que a treta era só comigo. F. repetiu que era só questão de tempo. Pois é. Ela, sábia que é,  estava certa. Taí.

Um dó. Um dó maior.