domingo, 15 de agosto de 2010

Da cabeceira
ontem à noite



"Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre ia ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante."
Clarice Lispector (Felicidade Clandestina)

7 comentários:

  1. que bom,nielson...seja bem-vindo!Tás em casa!
    =)

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  2. Vc gosta de ler e escrever ??? QUE LINDA !!!! Mulher perfeita.


    - Bom dia, disse a raposa.
    - Bom dia, respondeu polidamente o principezinho que se voltou mas não viu nada.
    - Eu estou aqui, disse a voz, debaixo da macieira...
    - Quem és tu? perguntou o principezinho.
    Tu és bem bonita.
    - Sou uma raposa, disse a raposa.
    - Vem brincar comigo, propôs o princípe, estou tão triste...
    - Eu não posso brincar contigo, disse a raposa.
    Não me cativaram ainda.
    - Ah! Desculpa, disse o principezinho.
    Após uma reflexão, acrescentou:
    - O que quer dizer cativar ?
    - Tu não és daqui, disse a raposa. Que procuras?
    - Procuro amigos, disse. Que quer dizer cativar?
    - É uma coisa muito esquecida, disse a raposa.
    Significa criar laços...
    - Criar laços?
    - Exatamente, disse a raposa. Tu não és para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos.
    E eu não tenho necessidade de ti.
    E tu não tens necessidade de mim.
    Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás pra mim o único no mundo. E eu serei para ti a única no mundo...
    Mas a raposa voltou a sua idéia:
    - Minha vida é monótona. E por isso eu me aborreço um pouco. Mas se tu me cativas, minha vida será como que cheia de sol. Conhecerei o barulho de passos que será diferente dos outros. Os outros me fazem entrar debaixo da terra. O teu me chamará para fora como música.
    E depois, olha! Vês, lá longe, o campo de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste! Mas tu tens cabelo cor de ouro. E então serás maravilhoso quando me tiverdes cativado. O trigo que é dourado fará lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho do vento do trigo...
    A raposa então calou-se e considerou muito tempo o príncipe:
    - Por favor, cativa-me! disse ela.
    - Bem quisera, disse o principe, mas eu não tenho tempo. Tenho amigos a descobrir e mundos a conhecer.
    - A gente só conhece bem as coisas que cativou, disse a raposa. Os homens não tem tempo de conhecer coisa alguma. Compram tudo prontinho nas lojas. Mas como não existem lojas de amigos, os homens não têm mais amigos. Se tu queres uma amiga, cativa-me!
    Os homens esqueceram a verdade, disse a raposa.
    Mas tu não a deves esquecer.
    Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas"

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  3. Ah, sim. O autor é
    Antoine de Saint-Exupéry
    Perdão ao autor.

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  4. texto de clarice nem se comenta....
    (se nem ela relia para não mudar, eu que não quero comentar para não "sujar" com sinônimos ou devaneios o que ela já disse.....
    Perfect!
    E a foto: maravilhosa!!!! adorei baby.
    Você não é mais somente PoetIZA... é PôArtIZtA.

    bisous

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  5. HC corredor!!!
    Que gentileza boa...há anos não relia esse trecho do "pequeno".Fiquei pensando sobre a arte que é o cativar, vivendo o bom da entrega e abraçando a responsabilidade que ela traz... mas sem precisar do cativeiro proposto pela raposa...raposinha possessiva essa,aff!!RS!!
    Também pensei no dourado,mas não o dos campos de trigo.Pensei no cativardourado de estar diante da colméia e abrir o favo com as mãos.Não sei nem se faz sentido,mas foi o que veio a mim.
    Sigamos com trocas literárias,HC!E que venham tb muitas corridas e pedais em energia boa...
    Beijo,querido!
    Volte sempre! =)

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  6. Ai,coquine...a Clarice é irretocável mesmo...
    Adorei o "PôArtIZtA"!rs!Quem me dera,meu bem...
    Viu que achei o anel amarelo?Nunca um objeto foi perdido e achado tantas vezes.Acho que ele é do MOMPER!hehehe...
    Beijo certeiro!

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