segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Pois sim
Ok. Não sei quanto a vocês, mas a vida por aqui não anda lá muito macia. Ruim, eu não diria... mas for sure longelonge de qualquer tipo de maciez. Eu concordo com a teoria de que fim de ano não presta e ponto. E o que a gente pode fazer além de olhar o touro nos olhos sem medo (minha vó quem me ensinou) é buscar os pequenos prazeres, o essencial gosto bom do simples. Hoje acordei engasgada em choro e juro que quase não saí da cama. Bati a mão nos livros de cabeceira e dei de cara com o Paulo Mendes Campos e essa crônica que quase sei de cor. Peguei meu casaco e escrevi nele a minha lista. E só aí meu dia começou. E começou melhor.

Coisas deleitáveis
"Depois de ter publicado uma lista de coisas abomináveis, pediram-me para fazer uma relação de coisas deleitáveis. Pois não:
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Coleção de revistas de antes da Primeira Grande Guerra, em feriado chuvoso; cigarro depois do café da manhã, sobretudo de manhã fria, no interior; água de geladeira; às quatro horas da manhã, depois de uma festa; arrancar os sapatos depois do baile; andar descalço em relva úmida; breakfast em cama de hotel; cochilar em viagem de automóvel com rádio tocando canções napolitanas; montar cavalo bonito; banho de cachoeira; banho de mar em manhã de verão na praia de Boa Viagem; grande partida de futebol à noite no Maracanã; dizer baixinho versos de Verlaine em madrugada de romantismo e vaga melancolia; ganhar discos de presente (João!); ganhar uísque de presente; conhecer gente que conheceu Machado de Assis; sombra de árvore; um bom papo em carro-restaurante; dormir cansando; viagem de segunda classe em transatlântico de luxo; lago de águas límpida; andar de canoa em rio grande; acertar um sem-pulo de canhota; acertar tiro ao alvo, sobretudo garrafa; jogar novela de Conrad no mar; música de João Sebastião quando a manhã é infinita; canivete alemão; aroma de madeira; passarinho colorido quando pousa perto da gente; oferecer bebida a uma senhora de idade e ela aceitar com prazer; octogenário lúcido e lépido; casa na qual morou quem admiramos muito; tulipas e narcisos à beira do Avon; batucada bem batida; batida bem batucada; flamenco bem dançado; comida chinesa; salto acrobático que pode causar a morte do artista; crawl com estilo; time de basquetebol americano; passe de Didi; gol de Pelé; drible de Garrincha; lembrar os grandes craques argentinos do passado; rasgar papéis inúteis; copiar caderneta de telefones; dinheiro que não se esperava; dinheiro quando é mais do que se esperava; fisgar um peixe; ver Raimundo Nogueira diante duma travessa de caranguejos; cartomante ou palmista quando acerta alguma coisa; geladeira nova, sobretudo a primeira; mudar para apartamento maior; andar de bailarina; roupa de palhaço de circo; o olhar superior do tigre; vento de montanha; tomar ponche de rum nos Alpes; canja de galinha dum restaurante subterrâneo que existe em Hamburgo; catedral góticas; igrejas barrocas de Ouro Preto; o adro da igreja de São Francisco de Assis, em São João del Rei; jabuticaba de Sabará; ar refrigerado; lareira em terra fria; milho cozido; bateria de cozinha novinha em folha; trazer para casa um queijo enorme; dar boneca para menina pobre; menino preto tomando sorvete; comer mexido à meia-noite, desembarcar de avião; álbum de pintura, sobretudo Paul Klee; brincar com argila; sol da manhã no inverno; foto em que a gente fica mais bonito do que é; máquinas de escrever, nova; lenço de linho; atlas; mapas antigos; passear de jangada; telefonar para outro país; descobrir, quando o cigarro acaba, que a gente ainda tem um cachimbo e uma lata de fumo; a palavra cognac, aprender o que é Weltanschuung aos 20 anos; xícara de porcelana; taça de cristal fino; facão de cozinha bem amolado; aprender que faca de pão é o instrumento ideal para descascar abacaxi; paradoxo de Bernard Shaw; cesta de cajus do Nordeste; hortaliças frescas em cima do mármore; aquele coelho de relógio em Alice no País das Maravilhas; lembrar de repente um episodio da infância; mãe; ser cumprimentado com intimidade pelo ministro da Guerra; passagem de graça para a Europa; achar dinheiro; ilha fluvial coberta de vegetação; piracema; baleia; balança de farmácia; adega de vinho; comer pão saído do forno; brincar de cozinhar; matar aula; votar bem cedinho e ter o dia todo para não fazer nada; pensar na confusão que havia em Jerusalém no tempo de Cristo; “sua pressão está ótima”; “no fígado o senhor não tem nada”; “assine o recibo nesta linha”; bisbilhotar biblioteca dos outros; discos dos velhos tempos; varanda de fazenda; pátio espanhol; cisterna; água nascente; a Floresta Negra; montanha-russa; water-shoot; apanhar com a mão a laranja que nos lançaram de longe; notar de repente que uma pessoa muito feia tem uma voz muito bonita; retirar o gesso; ducha escocesa; demonstrar teorema de geometria; mata de pinheiros; álamo; conversar com um velhinho que só entende de árvores; rever Luzes da cidade; o andar de Michèle Morgan; o sorriso de Ingrid Bergman; a feiúra de Katharine Hepburn; encher o filtro com batida de limão em dia de feijoada; ser apresentado a um rio famoso; ver uma raposa na estrada; flores; frevo; escola de samba; aquarela de criança; bola de couro nova; ganhar uma bola de borracha maciça na aula de catecismo; a vida de São Francisco; claustro; caixa de ferramentas; janelas para o mar; luvas de inverno; ter em casa uma poltrona de humorista inglês; espelho do século passado; quadro de Braque e de Morandi; motorista de táxi gentil; médico beberrão; crescimento de árvore plantada por nós; descobrir semelhança entre pessoas e objetos (por exemplo, entre uma lâmpada guarnecida por uma armação de ferro e o pai de Hamlet); o Rio visto de avião; fotografia antiga; descobrir uma frase que nos revele; colega de boa memória, recordando coisas do colégio; gente engraçada; gente que sabe imitar os outros; esquilo roendo avelã; Tarzã, o filho das selvas; Sherlock Holmes; mocinho que não erra tiro; o Blue Boy aos 17 anos; o Coração de De Amicis aos 14; Papini aos 18; o Jeca Tatu aos 7; Gulliver e Robinson Crusoé em edições juvenis aos 13; Pinóquio em qualquer idade; ver marceneiro trabalhar; fogueira na praia, à noite; dormir em barraca; estar vivo; descobrir que viver é de graça; poder falar a verdade; os momentos que precedem o jantar em casa de amigos; chegar em casa depois de viagem; ficar de short o dia inteiro; coceira de bicho-de-pé; ler na cama; casaco de camurça; ver jogo de futebol, na televisão, deitado; o primeiro contato com Pepino, o Breve; Luís Lopes Coelho; fazer a própria lista de coisas deleitáveis."
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Paulo Mendes Campos
E quem quiser tb compartilhar seus deleites com os adorados leitores do MTA, faça sua lista e mande pra mim... meutodoamarelo@yahoo.com.br ....
OBRIGADA aos que já enviaram... delícia de deleites... =)
beijobaladecafé e uma segunda boa a todos...
Iza.
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Aí vai a minha...
Dormir ouvindo o barulho da chuva, dormir ponto, correr enquanto o sol nasce, cheiro de bolo, bolo de limão, ouvir gente conversando em língua outra, cinemaprosapoesiacrônicas, ler, fechar livro pra chorar, fechar livro pra xingar "putaquepariu" em voz alta, ler livro emprestado e todo rabiscado, ler com quem se gosta, inspiração, cheiro de livro velho, cheiro de livro novo, livro ponto, água de banho, barba, alegria de cachorro, cheiro de grama cortada, corpo cansado deitado sem pressa no chão gelado, sonhar com a vó elza, o aconchego tímido da minha mãe, minhas hermanitas amadas, ganhar romã ou qualquer outra fruta de presente, ganhar palavras de presente, ganhar música de presente, dar presente espontâneo, sotaque nordestino, brilho no olho da criança em dia de circo, amor de criança, amor de amigo, amor ponto, mostrar pra alguém algo que escrevi e que escondo até de mim, cochilo no meio do dia, dor de cabeça que passa, as delícias do mundo virtual, viagem não planejada, saber ligar o foda-se, desemplano ponto, gargalhada da flavinha e da bela, sobremesa mal educada de tão saborosa, pequenas anarquias, alongar a panturrilha, decidir não esquecer o que é importante (mesmo que te faça sofrer pra cacete), aprender libras com o rubens, inventar libras com as margaridas, ter margaridas na vida ponto, a Fal existir ponto, ter apelidos, apelido maldoso que pega, medinho bobo de gente que fecha os olhos pra falar, small groups, mau humor do jeann combinado com o jeito único da Tataaa, espreguiço, dar nome a caderno, uma ofensa merecida e bem elaborada, saudade de gente querida, "on the road" com chá de laranja, Clarice Lispector todo dia, sol ponto, amarelo, MTA, escrever para arrancar o bicho do peito, usar faixa no cabelo, cachoeira, rio, mar, piscina e todas as possíveis águas variadas, café ponto, voz uma, Baioque do Chico Buarque cantada com gana em banho de chuva, música ponto (don't let me get started), dançar dançar dançar, requintes de crueldade, romper, unhas vermelhas, chorar pra passar, chorar de tanta pala de rir, o passar do tempo, querer fazer o tempo parar.

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