quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

E há
Você acorda atrasada. E ao invés de quicar da cama você fica ali um tempo, seguindo o ritual (ensinado por coquine) de escolher a roupa primeiro pela cor. Foi caramelo, da cor do Cacau. E ao invés de pegar o sapato mais confortável, na intenção de calçar melhor a pressa, você sobe em um par dos mais altos. Só pra ouvir a música do barulho dele no taco do chão. E ao invés de ignorar ou engolir o café da manhã você saboreia a torrada e o iogurte com calma. Like there is no tomorrow. Fio dental, escova, coque, maquiagem, perfume. Tudo em ritmo miúdo. E, já pronta, ao invés de pegar a bolsa e sair esbaforida, você se espalha pelo colchão amarelo para ler o primeiro poema do dia. Ai, Drummond. E toda essa atipicidade parece ridícula de tão natural. E tudo isso porque o que você viveu na noite anterior te ensinou um algo que se você soube já havia esquecido. A noite de terça te ensinou que sempre há tempo. Há tempo. E você aprendeu. Parece.
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Mil vezes Drummond
"Que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar?
amar e esquecer, amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal,
senão rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru, um vaso sem flor,
um chão de ferro, e o peito inerte,
e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuido pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor,
e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita."

Carlos Drummond de Andrade
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Sabino!!! ai, pára... =)
(Baltazar querido, me diz se esse paciente não é vc!!!rs!!)
O gato sou eu
"- Aí então, eu sonhei que tinha acordado. Mas continuei dormindo.
- Continuou dormindo.
- Continuei dormindo e sonhando. Sonhei que estava acordado na cama, e ao lado, sentado na cadeira, tinha um gato me olhando.
- Que espécie de gato?
- Não sei. Um gato. Não entendo de gatos. Acho que era um gato preto. Só sei que me olhava com aqueles olhos parados de gato.
- A que você associa essa imagem?
- Não era uma imagem: era um gato.
- Estou dizendo a imagem do seu sonho: essa criação onírica simboliza uma profunda vivência interior. É uma projeção do seu subconsciente. A que você associa ela?
- Associo a um gato.
- Eu sei: aparentemente se trata de um gato. Mas na realidade o gato, no caso, é a representação de alguém. Alguém que lhe inspira um temor reverencial. Alguém que a seu ver está buscando desvendar o seu mais íntimo segredo. Quem pode ser essa alguém, me diga? Você deitado aí nesse divã como na cama em seu sonho, eu aqui nesta poltrona, o gato na cadeira… Evidentemente esse gato sou eu.
- Essa não, doutor. A ser alguém, neste caso o gato sou eu.
- Você está enganado. E o mais curioso é que, ao mesmo tempo, está certo, certíssimo, no sentido em que tudo o que se sonha não passa de uma projeção do eu.
- Uma projeção do senhor?
- Não: uma projeção do eu. O eu, no caso, é você.
- Eu sou o senhor? Qual é, doutor? Está querendo me confundir a cabeça ainda mais? Eu sou eu, o senhor é o senhor, e estamos conversados.
- Eu sei: eu sou eu, você é você. Nem eu iria pôr em dúvida uma coisa dessas, mais do que evidente. Não é isso que eu estou dizendo. Quando falo no eu, não estou falando em mim, por favor, entenda.
- Em quem o senhor está falando?
- Estou falando na individualidade do ser, que se projeta em símbolos oníricos. Dos quais o gato do seu sonho é um perfeito exemplo. E o papel que você atribui ao gato, de fiscalizá-lo o tempo todo, sem tirar os olhos de você, é o mesmo que atribui a mim. Por isso é que eu digo que o gato sou eu.
- Absolutamente. O senhor vai me desculpar, doutor, mas o gato sou eu, e disto não abro mão.
- Vamos analisar essa sua resistência em admitir que eu seja o gato.
- Então vamos começar pela sua insistência em querer ser o gato. Afinal de contas, de quem é o sonho: meu ou seu?
- Seu. Quanto a isto, não há a menor dúvida.
- Pois então? Sendo assim, não há também a menor dúvida de que o gato sou eu, não é mesmo?
- Aí é que você se engana. O gato é você, na sua opinião. E sua opinião é suspeita, porque formulada pelo consciente. Ao passo que, no subconsciente, o gato é uma representação do que significo para você. Portanto, insisto em dizer: o gato sou eu.
- E eu insisto em dizer: não é.
- Sou.
- Não é. O senhor por favor saia do meu gato, que senão eu não volto mais aqui.
- Observe como inconscientemente você está rejeitando minha interferência na sua vida através de uma chantagem…
- Que é que há, doutor? Está me chamando de chantagista?
- É um modo de dizer. Não vai nisso nenhuma ofensa. Quero me referir à sua recusa de que eu participe de sua vida, mesmo num sonho, na forma de um gato.
- Pois se o gato sou eu! Daqui a pouco o senhor vai querer cobrar consulta até dentro do meu sonho.
- Olhe aí, não estou dizendo? Olhe a sua reação: isso é a sua maneira de me agredir. Não posso cobrar consulta dentro do seu sonho enquanto eu assumir nele a forma de um gato.
- Já disse que o gato sou eu!
- Sou eu!
- Ponha-se para fora do meu gato!
- Ponha-se para fora daqui!
- Sou eu!
- Eu!
- Eu! Eu!
- Eu! Eu! Eu!"
Fernando Sabino
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Pequeno milagre...
"Eu não vou. Porque a única pessoa que gosto de lá sou eu e eu não vou. Se eu fosse eu até iria, mas já que eu não vou, eu vou lá pra quê? Pra ficar sentado sozinho?" Disse, com ares sérios e fazendo todo o sentido...

6 comentários:

  1. Sim chèrie.
    Há.
    Há tempo. Há chance. Há espera. Há amor.
    Há tempo principalmente para curtir o temos de bom um no outro. Para enxergar esse bom. e valorizar esse bom.

    "Pronto, passou.

    Tudo passa. Também a primavera passará"

    Sábias palavras de releitura em conjunto para uma terça à noite.

    bisous

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  2. Amar... eh bom amar... :) saudades do amor... mas logo ele chega né?

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  3. coquine, meu bem. que bom que há e há.Que bom. E que passe logo a primavera com essa abundância de tudo... Sobrevivamos até 22 de dezembro pois.
    shame on you, spring!!!hehehe
    beijodoce

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  4. chega logo e chega o tempo todo, pequi... na pequenez da delicadeza, na grandiosidade do todo... chega agora e chega logo simsim... =)
    E quem somos nós pra peitar o drummond?rs!
    beijoazul p'c!

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  5. pequi!tava escrevendo na hora em que vc postou o coment...hehehe! Manhãs cheias de agora em diante... depois te conto... =)
    beijobeijo!

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