terça-feira, 27 de setembro de 2011

Estômago
arte de duy huynh

""A paciência, a paciência, a paciência, só isso ela encontrava na primavera ao vento".
Leio e fico pensando como é que Clarice Lispector escreveu isso. Pois é claro que toda primavera venta, varrendo o inverno, anunciando que um novo ciclo começou. Mas a associação direta com a paciência só costumava aparecer na filosofia chinesa, que liga o leste com o vento, a primavera, a manhã, os olhos, o fígado, o sabor ácido, a criação e a calma observação do que acontece, isto é, a paciência. Até porque a primavera sempre dá mais do que pode - arrebata, apaixona, excita órgãos e sentidos.
Como aguentar isso?
"Com paciência", responde o sábio.
"Ter paciência significa conter a própria inclinação para as sete emoções: ódio, adoração, alegria, ansiedade, cólera, pesar, medo. Não cedendo a elas você se torna paciente, depois compreende todo tipo de coisas e entra em harmonia com a eternidade". "
Sonia Hirsch ( em "meditando na cozinha")

"Madalena era sinestésica. Ia pra varanda, fumava um maço de cigarro e pensava em coisas brancas, pretas, azuis, vermelhas, amarelas. Sua vó era rosa com marrom. Sua mãe era lilás e o homem que mais amou na vida era azul com preto. Aliás, feio. Madalena achava muito bonito um homem muito feio. Sean Penn, Benicio Del Toro.
Ia ao cinema sozinha esperar um príncipe encantado. Ia pra balada, bebia 3 mojitos, 2 tequilas e dava vexame modelo grande, ria à toa. Estudou Ballet, não tinha vocação e desistiu, mas ainda trazia aquele típico ar blasé. Estudou teatro, até tinha algum talento, mas também desistiu. Remoía as perdas e traições no escuro da sacada, sem contar a ninguém. Amanhecia chorando, anoitecia dançando. Manchava a blusa branca quando expulsava o cheiro de Vanilla."
Isadora Monteiro

"Escreva minha filha, escreva. Quando estiver entediada, nostalgica, desocupada, neutra, escreva. Escreva mesmo bobagens, palavras soltas, experimente fazer versos, artigos, pensamentos soltos, descreva como exercício o degrau de escada do seu edifício, escreva para não publicar e principalmente para não publicar. Não tenha a preocuapação de fazer obras primas, que de há muito eu já perdi, se que algum dia a tive, mas só e simplesmente escrever, se exprimir, desenvolver um movimento interior que encontra em si proprio sua justificação. Isto é muito melhor do que traduzir Proust, distração que não distrai, porque é chata como toda tradução, e acaba nos desculpando mui fracamente perante nós mesmos de não havermos escrito por nossa conta e responsabilidade."
Carlos Drummond de Andrade (em carta para Maria Julieta)
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Minicontos sobre a falta

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Mia apertou o passo. Passou dias passando a limpo tudo da vida que estava passando batido. Reviu valores, releu o pouco lido, reavaliou atitudes, retomou aquele plano, reestabeleceu prioridades, repetiu diferente, redesenhou traços esboçados, redefiniu o conhecido, reinventou vontades, refez o feito sem gana, repensou o querer e, enfim, redescobriu a cor. Reconheceu que o que faltava era ela mesma. A nova ela, que já havia chegado mas ainda não tinha achado lugar. Até que achou.
E chegou com verbos em re sem ré.

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Ele chegou depois de um mês do início das aulas e escolheu como lugar fixo na sala a carteira atrás da dela. Lucas. Alice sentiu algo estranho desde o minuto um e a presença dele causava um desconforto diário e implacável. Lucas tinha a pele clara, cabelo escuro e sotaque do sul. Alice tinha olhos gigantes, cachos que mudavam de cor e um dente pendurado na orelha. Lucas gostava de Alice e Alice detestava Lucas. Em silêncio. Lucas a escolhia como dupla para as coisas de sala, levava borrachas perfumadas de presente e ria de tudo que ela falava. Alice o tratava com indiferença, olhava reto nos olhos para frisar cada nãosorriso e fazia questão de, em silêncio, ser melhor que ele em tudo. Acertava mais nos ditados, ganhava corridas na aula de educação física e destruia o garoto no espirobol. Lucas gostava de escrever e Alice passou a desfilar as melhores notas em redação. Lucas era só graça e Alice congelava os lábios em bicos. Até que em novembro Lucas voltou para Porto Alegre e Alice não viu a alegria da despedida chegar. Ele foi embora e ela perdeu a cor. Lucas faltava e Alice se culpava pela falta de percepção do amor. Era cedo e ela era menina. Não tinha entendido aquele sentido até então desconhecido se manifestando nela. E Alice chorava, em silêncio, sua falta de entendimento.
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