quarta-feira, 28 de setembro de 2011

rua curta

Eu não moro na Rue Humboldt mas escrevo cartas. Algumas acham seu destinatário em um segundo e outras esperam o entendimento do tempo montar o quebra-cabeça das letras do nome. Mas a verdade é que grande parte delas não são entregues. Não por ineficiência dos correios, por problemas na rede ou por confusão na hora de escrever o endereço. Elas não saem daqui por que quando saem de mim aqui ficam. Como se nesse curto trajeto elas já cumprissem sua função. Tristes ou festivas, elas são guardadas em maços esparsos para leituras futuras. Sei que as guardo com carinho e cheiro as folhas durante as releituras. Gosto do cheiro das coisas todas que são guardadas porque consideradas valiosas. Acho bonito isso. E faz tempo que não te escrevo. Tenho saudades de te escrever. Tanto o a ser mandado quanto o que você nunca vai ler. Tenho saudades de escrever você.
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Por que amo a fal, aquela gana! 
(tb na rua =))

"Prezado sr. H.:
Como vai?
Meu nome é Helena, e vivo há três anos neste prédio baixo e simples, sem porteiro e sem elevador, em São Paulo. É um prédio pequeno e tranquilo, que fica numa rua curtinha, estreita e sem saída. Temos quatro andares, dois apartamentos por andar.
Foram treze vezes, senhor H., nesses três anos em que vivo aqui, que recebi cartas suas. Cartas que alguém chamado Beatriz deveria ter aberto e lido. Mas ela não vive aqui, sr. H. Apenas eu, Helena, vivo aqui. Eu e meu gato, Olavo
Sr. H., entenda: é um prédio tão pequenino que não temos o apartamento 160 para onde são endereçadas suas cartas. Dona Normélia, a zeladora, é a responsável por receber, separar e entregar a correspondência. E sempre que vê uma carta endereçada ao apartamento 160 (uma carta sua endereçada ao número 160), ela desliza o envelope por baixo da porta do meu apartamento. O apartamento 16 (moramos em apartamentos de mesmo número, reparou, sr. H.?).
Nas treze primeiras vezes em que recebi a correspondência para a Beatriz, esperei o carteiro no sábado seguinte (o único dia que estou em casa em horário hábil) e devolvi as cartas para ele. Sem maiores explicações. Também nunca me expliquei para a dona Normélia.
Mas, confesso, ontem algo me deixou inquieta. Esse décimo quarto envelope era diferente, sr. H., o senhor sabe disso. Quando cheguei em casa, vi que havia um envelope seu me esperando no tapete azul. Quero dizer, esperando a Beatriz. A Beatriz que não vive aqui, que desconhece suas cartas, que nunca está aqui quando elas chegam. Sabia que aquele envelope no chão, sobre o tapete azul, era seu, sr. H., porque era cor de vinho. Todos os seus envelopes são cor de vinho. Sei também que Olavo andou sobre ele depois de andar pelo parapeito molhado da janela da sala (há dois dias chove sem parar em São Paulo), porque há marcas de patinhas sobre sua letra pequena e regular. Eu me abaixei e peguei o envelope, decidida a enfiá-lo na mesma gaveta onde coloco todos os seus envelopes, até que sábado chegasse. Mas sr. H., do outro lado do envelope, em letras de fôrma negras, enormes, estava escrito:
RESPONDA, POR FAVOR!
URGENTE.
O senhor sabe disso. Foi o senhor quem escreveu.
Coloquei o envelope sobre o aparador e fui tomar banho. Depois, vestindo pijama, esquentei água e fiz meu miojo (meus hábitos alimentares são lamentáveis, mas não quero falar sobre isso). Com o prato na mão, liguei a televisão e o DVD e assisti dois episódios de West Wing, minha série favorita. Sim, eu como na frente da televisão. Mais hábitos lamentáveis. E depois, fui para a cama. Mas, ao me deitar, e antes disso, ao assistir minha série e antes disso, ao esquentar minha água para fazer meu, ah, macarrão, sua carta não me saía da cabeça. Não exatamente a sua carta, mas o seu pedido: RESPONDA, POR FAVOR! URGENTE.
Gostaria de dizer que fiquei preocupada. Gostaria mesmo de dizer que temi pela sua saúde, pela saúde dos seus, até mesmo pela saúde da Beatriz (quem sabe a carta não conteria um alerta sobre algum recém-descoberto e letal gene familiar?). Gostaria de dizer que temi pela sua segurança ou pela segurança dela.
Gostaria de dizer que só quis ajudar.
E, talvez, só talvez, seja verdade. Talvez eu realmente só tenha querido ajudar.
Mas sr. H., sou humana. Foram treze cartas em três anos. Sou apenas humana. E, ao ver aquelas palavras no envelope… Fraquejei.
E fiz o que ninguém deveria fazer. Sr. H.: abri uma carta endereçada a outra pessoa. Por favor, não me julgue. Ou me julgue, sim, direito seu, mas entenda: foi mais forte do que eu.
Assim que comecei a ler, me arrependi. E, arrependida, não parei de ler até o final.
É uma carta linda.
Nunca recebi nada nem remotamente parecido com aquilo.
Nunca.
Tenho inveja dessa Beatriz, e mesmo arrependida, fico feliz de ter lido a sua carta para ela.
Mas achei que deveria escrever para o senhor para contar: li sua carta, violei sua intimidade e peço desculpas.
A carta é linda e lamento muitíssimo que a Beatriz não tenha lido.
Espero que o senhor a encontre.
Depois de ler a carta, não pude mais dormir. Zanzei pela casa, ouvi músicas pela metade, comi só o recheio macio de uns 4 bombons, até me sentar para escrever para o senhor. Precisava dizer alguma coisa, preciso…
Eu não sei.
Por favor, tente me perdoar.
Junto a esta, segue a sua carta (violada), para que o senhor possa, se quiser, guardá-la.
Sr. H., não sou uma pessoa má. Não me meto na vida de ninguém, não faço fofoca (bem, não muita), não cometo crimes, não machuco animais (Olavo testemunhará por mim) e quase não cometo crimes federais do tipo violação de correspondência.
Não sei mesmo o que foi que me deu.
Um abraço,
Helena Nucci
PS: O senhor diz ter enviado 26 cartas para ela. Nos três anos em que aqui estou, foram catorze as que chegaram. Treze delas, devolvidas para o carteiro. Uma violada. Não imagino o que possa ter acontecido com as outras. Foram anteriores a esse período?
H."
Fal Azevedo (escrevendo aqui tb ó)
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