segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Por que amo a fal
na rua, dando sequência =)

"Senhora Helena
A senhora já sentiu medo? A senhora já sentiu as pernas tremerem e o coração acelerar e as mãos buscarem apoio em qualquer coisa que seja para se evitar uma queda? A senhora conhece a sensação de ter o corpo ausente e o chão sumir e os pêlos se eriçarem e o mundo girar e a garganta se fechar, como se na garganta houvesse um balão, uma bola, uma pedra, um tijolo, e o ar lhe faltar e passar diante dos seus olhos todos os instantes de sua vida, os momentos vividos, os imaginados, os não acontecidos? Já lhe aconteceu alguma vez de as frases não ditas e os sons não escutados e as músicas nunca cantadas ecoarem na sua mente, nos seus ouvidos, em suas mãos, nas paredes, nos móveis, e de repente tudo ser engolido pelo silêncio mais profundo?
Foi isso que senti, senhora Helena, quando, ao chegar em casa na última sexta-feira, vi, na caixa dos correios, a ponta verde do envelope com sua carta. Senti medo. Senti medo e sentei na escada, em frente à caixa dos correios, e chorei.
Não sou homem de rituais, senhora Helena. Não creio em quase nada. Nem em Deus, nem nos homens, nem nas instituições, nem na dignidade do trabalho, nem na Democracia, nem na mídia, nem na sacrossanta família, nem na alegria. Mas há sete anos sigo, com fervor quase religioso, um único ritual: olhar diariamente três vezes a caixa dos correios e ver se há alguma carta, algum telegrama, alguma coisa vinda de Beatriz. Esperar um sinal de Beatriz é minha religião. Como, bebo, ando, me visto, tomo banho, escovo os dentes, durmo, acordo, respiro, para esperar um sinal de Beatriz. Não creio em quase nada, mas a crença de que, um dia, Beatriz responderá uma carta minha, me mantém de pé. Esperar um sinal de Beatriz é minha profissão de fé. E, na última sexta-feira, a ponta verde do envelope na caixa de La Poste me fez sentir o maior dos pavores. Porque eu sabia que não era uma carta de Beatriz. Não creio em sinais nem em metafísica nem em nada, mas por algum motivo algo em mim gritava que não era Beatriz que escrevia. E sentei e chorei. De medo. Porque ninguém me escreve, senhora Helena. Há sete anos não recebo nenhuma carta que não sejam as cobranças de impostos e contas de luz e gás e água e cartas tolas de empresas que não conheço me oferecendo coisas que não quero, nem créditos dos quais não preciso. Não há nenhum motivo para receber uma carta em envelope verde. Não há, ou não havia, qualquer possibilidade de receber uma carta em um envelope verde que não fosse algo relacionado a Beatriz, mas certamente não seria dela.
Passei bom tempo, dois ou três ou quinze ou noventa dias, não sei precisar bem, sentado na escada até recuperar um pouco do pouco que ainda resta de mim, e tomei coragem e peguei o envelope verde e respirei profundamente oito ou nove vezes e abri os olhos para confirmar que era para mim a carta, e de quem ela vinha. A sua carta.
Moro no quarto andar, senhora Helena, e aqui, nesta cidade, é comum os edifícios não terem elevador. Me arrastei quatro andares acima, senhora Helena, com seu envelope verde nas mãos. E a cada degrau o envelope ficava mais pesado. E quatro andares acima ele pesava tanto que eu já perdia o fôlego e o arrastava pelo chão, e ao entrar em casa o envelope verde arranhava o piso e precisei parar por alguns minutos e reunir forças para colocá-lo em cima do sofá que é também a minha cama e minha mesa e meu guarda-roupas. Faz muito frio em Paris nesta época, senhora Helena, mas eu suava e ao conseguir, com muito esforço, colocar o envelope no sofá, meus braços doíam como se houvesse participado de uma competição de halterofilismo. Sou magro, senhora Helena, e não tenho braços de halterofilista. Toda a minha atividade física se resume a descer quatro andares de manhã e ir à boulangerie do outro lado da rua comprar uma baguette e água e uma caixa de fromage La Vache Qui Rit, e subir quatro andares de escada, depois descer os mesmos quatro andares à tarde e ir à caixa dos correios pela segunda vez no dia (já que na volta da ida matinal à boulangerie já dou a primeira olhada na caixa dos correios), subir novamente os infernais quatro andares e, à noite, descer mais uma vez os malditos quatro andares e tomar um chá no café do Micko (um polaco, eslovaco ou coisa que o valha, a única pessoa com quem troco algumas palavras todos os dias, um bonsoir aqui, um s´il vous plais ali e um au revoir esporádico quando a temperatura está acima de cinco graus) e depois olhar a caixa dos correios e subir os centoevinteeoitomil desgraçados degraus pela última vez. Não faço nada além disso que me possibilite ter preparo físico suficiente para ser um halterofilista, mesmo que amador. Então, senhora Helena, o envelope verde que chegou a pesar meia tonelada ao fim de quatro andares ficou ali, em cima do sofá-cama-mesa-guarda-roupas, e eu sentei no chão, e ficamos olhando um para o outro. E não sei se foram três minutos ou doze horas, mas sei que por um bom tempo vi Beatriz sorrindo e vi Beatriz sair do banho e vi Beatriz com o rosto cheio de lágrimas e os olhos gritando au revoir e vi Beatriz mexendo o nariz de modo encantador enquanto cantava Love of My Life e vi Beatriz fazendo uma performance de Freddy Mercury e segurando uma vassoura como se fosse um microfone e vi Beatriz nua, e não vi mais nada, porque dormi ali, com o envelope verde de meia tonelada ressonando em sono profundo em meu sofá-cama-mesa-guarda-roupas.
Quando acordei, senhora Helena, o envelope verde continuava lá, imóvel e de olhos abertos porém um pouco sonolento por conta da pouca luz que as manhãs de inverno derramam sobre Paris. E eu já tinha a coragem suficiente para pegar o envelope verde, que a essa altura já tinha voltado a pesar alguns poucos gramas, e abri-lo. Já não sentia medo. Apenas curiosidade.
Não a julguei, senhora Helena. Não julgo ninguém. Não julgo nada. Não recrimino nada. Não questiono nada, nem tampouco duvido de nada. Se há algo em que acredito, e são bem poucas as coisas em que acredito, e, aqui entre nós, nem sei exatamente se acredito que acredito no que quer que seja, é na absoluta impossibilidade de que qualquer julgamento seja justo. O que é a justiça, senhora Helena? Não existe a justiça. A justiça é uma conveniência. Não há justiça, a justiça é um delírio. Não a julguei, senhora Helena. A senhora não violou minha intimidade. Não a possuo. Não há assassinato sem cadáver. Para haver intimidade a ser invadida é preciso que haja alguma intimidade com algo ou alguém. Não houve crime, pela simples falta de vítima. Não sou íntimo de nada, senhora Helena. Não há íntimo em mim.
Na verdade, senhora Helena, senti alívio. Depois de gigantesco pavor, alívio. Não havia na sua carta qualquer sinal de que Beatriz esteja doente, morta, casada ou em risco de morte iminente, o que, em qualquer dos casos, seria mais ou menos a mesma coisa. Não havia em sua carta nenhum sinal de que tenha visto Beatriz, ou de que conheça Beatriz, ou de que seja portadora de boas ou más ou de ainda piores notícias de Beatriz. E, se isso pode parecer um contrassenso, é bom que seja assim. Porque, assim, mantenho viva minha única crença: a de que, um dia, Beatriz irá me enviar uma carta, um bilhete, um telegrama. Ela está em algum lugar, senhora Helena. Eu sei disso. Eu sei disso. Eu sei que ela, um dia, vai mandar uma carta, um bilhete, um telegrama, que não virá em envelope verde. Eu sei que, um dia, ela virá. E vai sorrir, e cantar, e dançar até as paredes pedirem pausa para descansar. E não haverá mais frio em Paris, e Paris voltará a ser a Cidade Luz, e a Torre Eiffel, nesse dia, irá piscar não por cinco minutos mas por vinte e quatro horas todo dia sem parar, para festejar a volta de Beatriz e Paris irá aparecer em todos os telejornais de todo o mundo como o lugar mais feliz do mundo e em todas as fotos dos milhões de turistas haverá um brilho diferente e que não irá aparecer em nenhuma foto feita em qualquer outro lugar do mundo, senhora Helena. Eu sei de tudo isso.
Perdoe a carta extensa. E perdoe por incomodá-la durante tanto tempo com minha correspondência. Sinceramente, não sei como foi parar em seu endereço. Não sei. Espero que compreenda.
Se possível, volte a escrever. Agora sei que os envelopes verdes são seus. Não sentirei mais medoUm abraço,
H.

P.S.: A senhora diz que meus envelopes tem cor de vinho. Nunca enviei nada em envelopes cor de vinho, senhora Helena. Nunca. Compro sempre um pacote com dez envelopes brancos, na Gilbert Jeune. Brancos, lisos, sem cor, sem faixas vermelhas nem azuis, sem “par avion”. Um euro e noventa centavos, dez envelopes. Sempre, brancos. Não sei explicar. Não sei."
Fal azevedo
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2 comentários:

  1. Adoro essas cartas de motivos europeus. Porque duram mais, são de época e atemporais. Porque eles sofrem mais. Ah, os nórdicos...

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  2. tb adoro, nina! ainda mais assim, pelas mãos da fal, que escreve cartas com maestria... =)
    espero que esteja tudo bem contigo e que vc tenha uma quinta leve nessa terra boa que é a sua!
    beijofresco!

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