quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

 Por que eu amo a Fal

"Tormenta

Ninguém pode ser o que você quer que ele ou ela seja, ou o que você precisa. As pessoas são o que são. Talvez elas se encaixem. Talvez não. Talvez você se encaixe. Talvez seja tudo uma grande besteira. Talvez o emprego apareça, ou as suas cutículas parem de doer, ou ele ligue duas, três vezes por semana só para saber como você está. Talvez você finalmente entenda aquele livro estranho, talvez um filme com o Kevin Kline salve você, talvez você se dê conta de coisas muito apavorantes durante uma madrugada muito triste. Talvez a sua alergia misteriosa se manifeste mais violenta do que nunca. Talvez você acabe bebendo vinho rose numa taça linda ou andando num carro sem capota com o Miltão ou num consultório médico recebendo notícias horríveis.

Talvez haja um fim.

Talvez não.

Quando Claudel disse há algo de ausente que me atormenta, ela não se referia só às chances que não alcançava por ser mulher num mundo de homens, ao amante casado que jamais seria dela, ao seu próprio talento (que era imenso). Ela não se referia apenas ao que nunca é o que desejamos ou esperamos de nós mesmos, ao amor, à felicidade, ao tempo, à grana, à liberdade.

Sempre acho que Claudel se referia fundamentalmente a si mesma. Nunca estamos, real e definitivamente. Não de verdade, não sempre, não, não.

O algo de ausente que sempre falta somos, ao fim e ao cabo, nós mesmos. Eu para mim, você para você.

Estamos, nós, minha voz anasalada e irritante, sua voz grave e doce, nossa coragem, nosso mover de mãos, peito, pelos, unhas, lábios e suas pelinhas, dentes e aquele quebradinho do dente, mamilos, unha do dedão, dedos dormentes, boceta, pontas mastigadas do cabelo e olhos que embaçam, estamos, todos, em falta conosco, distantes, meio apagados, meio longe demais, ausentes.

Nunca estamos, nunca estamos o suficiente em meio à tormenta dos dias, das dores, das graças, dos sins.

Nós nos atormentamos a nós mesmos e nos faltamos e nos faltamos."

Fal Azevedo 

domingo, 5 de janeiro de 2025

 "A assinatura de todas as coisas"

Livro. Livro é coisa outra que é livro mas é mais. Porque se expande para além da história no papel, abre esse portal imagético automático e quase inexplicável. O livro dita o escrito e você cria caras, roupas, ruas, movimentos. Inventa sem pensar o tom do diálogo, a voz que fala, o silêncio que ouve. E sente a umidade da gruta, a textura aveludada do musgo, o cheiro na nuca, a angústia e o amor de quem "nem existe". E ri e chora e vira refém da história pra depois ficar meio órfã quando ela acaba. Um livro é mais que uma história contada. E consegue ser ainda mais se se põe a caminhar, ganhar mundo. Aí, quem de novo o lê conhece a leitura de quem já o leu. Não só por traços, grifos ou palavras soltas de canto. Mas por que ali se conecta com idos olhos atentos, com a impressão invisível dos dedos nas folhas, com o barulho do passar das páginas, com as pausas. Há toda uma energia vivida na leitura do outro que chega pra quem agora chegar. E essa beleza, esse encontrar, me toca. Tanto me toca que coloco sem dó meus livros pra girar e esse, a partir de hoje, é seu. Acho justo. Acho justo que você me leve nele, eu estando ali nas quatro vezes que o li. E leva de quebra também outros dez pares de mãos e olhos de gente querida que por ele passou. De alguma forma, quase inexplicável, eu o lerei contigo.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

 Acorde

"Uma discreta insinuação de interesse entre duas pessoas". Essa é uma das definições de flertar que mora no dicionário. Descrição simples de algo que de fato é simples, mas de certa forma complexo. E bem gostoso, sinto eu. Especialmente aquele que segue sem pressa, que não se limita a minutos antes de um beijo na mesa de bar. Falo do flerte que demora a se entender como tal, da dinâmica que vai mudando de jeito. Até que sabe-lá-o-que vira uma chave invisível e você percebe um interesse outro do outro e se olha pra descobrir se há interesse em si. Se sim, começa a dança. Dança que varia em ritmo e sobe em tons. Devagar. E talvez venha daí a complexidade que mencionei, desse movimento que se demora um cadinho na despretensão e desafia imediatismos. Do movimento que degusta o nascer e crescer das vontades ainda no campo da incerteza. Qualquer toque vira marcadamente um toque, o olhar vai aprendendo a se demorar, risos mais soltos, pausas, desconcertos. Pequenos frenesis. É o outro passear a língua pelos lábios enquanto você fala e você, por um instante, se perder no que estava dizendo. Pequeno frenesi. Prazer simples de sem mais acontecer.

Um sol. Um sol suspenso.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

 Poema oração para os dias todos

"De uma maneira ou de outra

é o tempo e a sua desenvoltura

nos proporcionando possibilidades de nos atrevermos

nos refazermos em movimento com o espaço

em pensamento e intuição com o próprio tempo.

É o meu existir em desfile aberto

por entre as existências todas.

É o tempo e a sua desenvoltura

renovando os estados de consciência

através das constantes travessias

das incessantes batalhas

que nos trincam as cascas

nos trocam as peles

amolecem o leito e o peito

e a cada passo fortalecem o coração.

No tempo e no espaço deixo rastros

deixo jeitos, deixo risos, deixo choros,

deixo histórias, deixo glórias, deixo perdas,

deixo sortes gastas e presentes do azar.

Deixo, deixo, deixo e deixo

até que minhas percepções acessem a fenda

um portal, um estreito laço entre as dimensões

onde meu espírito observa-se vívido e vivo

reconhece a si mesmo dentro de um corpo re-habitado

realmado, reamado e desarmado.

Pela resiliência que nos sorri

com a sabedoria dos saltos

e a experiência das quedas."

João Pedreira