sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

 Sem ponto

Falzuca monotemática, obcecada pela finitude e eu imersa no emaranhado dos meios, dos (des)contínuos processos, dos acordes em arpejo. Menos por curiosidade e mais por questão de sobrevivência, meus olhos têm aberto holofotes para o entre das coisas. E aí tenho achado prazer. Tanto pela descoberta de entendimentos novos, ritmos outros, quanto por, na prática, me colocar mais entregue ao caminhar do que ao fim programado. Sinto que tira peso e julgamento dos processos incômodos e traz frescor e tempero aos macios. Mas não é algo automático. "Ticar" etapas cumpridas para chegar na meta pretendida é tão automático para quase tudo que é um exercício ir rompendo com esse modus operandi. Exercício às vezes confuso, às vezes cansativo, mas que tem feito sentido. Pra mim. Quem diria que nadar contra minha própria maré me traria o gosto de me deixar levar livre na correnteza. 

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

 Oníricos n° 1

Você apareceu bem no finalzinho e achei estranho. Mal te encontro na vida e de repente te vejo em sonho. Você se ajeitou em meio a sacolas de supermercado para me dar um abraço de oi, sorriu largo e conversamos sobre floradas de mel. Laranjeira, angico, cajuja, café. Outras pessoas chegaram, a prosa mudou de rumo e, não sei como, seu cheiro me veio na ponta dos dedos da mão. Fiquei ali, surpresa, sem saber o que sentir ou dizer. Mas acordei com vontade de escrever.

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

 Corre aqui, Gloria Steinem


Às vezes me pego descrente, bem descrente. Não me abala os ânimos, que continuam a querer e a agir e a me jogar em pensamentos impossíveis (impossíveis porque fora do campo tido como regra, mas não realmente impossíveis). Acredito no voo como meio e fim, mas o prático da vida é mais chão estático do que qualquer outra coisa. Descrente ao perceber ( e essa percepção é só minha?) que mulheres letradas, que se dizem feministas, aplaudem com vigor mulheres que rompem com os padrões de silenciamento e se expõem ao invés de se anularem, desde que seja à distância, da porta pra fora. Pagam pau para a escritora, a jornalista, a ativista, a personalidade que tem a coragem de sair da posição ensinada de "boazinha" e se manifestam com veemência, colocando limites, exigindo respeito. Aplaudem. Desde que seja da porta pra fora. Porque se for alguém próximo, uma irmã, uma amiga, em situação que haja envolvimento, a resposta vai ser choque e não aplauso. As mesmas mulheres que querem se livrar da prisão de ter que agradar o tempo todo, não aceitam a mulher que desagrada. De perto, no pouco que falam, te falam pra "deixar pra lá", deixar que o tempo resolva as coisas (leia-se, passar pano), abafar o que se sente e acredita, tudo em nome do "amor" e da manutenção das coisas como estão. Não se posicionam, não emitem opinião a favor ou contra, ninguém quer se indispor, correndo o risco de também desagradar (esse horror!). Elas acreditam que mulheres devem usar sua voz, erguer a voz (oi, bell hooks), mas se a mulher próxima traz à tona algo difícil de se ouvir, não há aplausos. Na prática, quem quebra a regra do silenciamento dos incômodos, peraí, ousou demais e só merece distância. Aí me pego descrente, me perguntando se a gente está evoluindo de fato ou se é só discurso pra sabe-se lá quem ver. Não sei. Não sei. E me pergunto também por que eu ainda me importo, se tenho clareza da dureza de se bancar e me banco. Eu me banco. Eu perdi o medo do chão. Acontece que não ter mais medo do chão não me livra do impacto da queda. Talvez por isso eu ainda me importe, por causa do impacto, do susto. Mas quero acreditar que, pela repetição que estou certa que virá, uma hora o impacto ganhe ares de pouso. Daí não vou mais me importar.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

 O assovio

Eu assovio alto. E assovio bem o assovio alto. Aprendi sozinha, quando criança, na casa da minha avó em umas férias Monte Carmelo. Eu me sentava naquela janela gigantesca e ficava ali por horas olhando o passar da rua e soprando molhado por entre os dedos. Até que um dia saiu som. Saiu som. E achei tão incrível o contato com aquele som novo, aquele som meu, que fui diversificando o jeito de assoviar, entregue ao misto gostoso de desfio e brincadeira. Só que meu assovio, que me dava prazer, era expressão de alegria, um abano de rabo de cachorro feliz, passou a ser uma questão já na vida adulta. Porque ele não gostava. E tudo bem ele não gostar, era para ser um problema dele e não meu. Mas, né, o QUE não era problema meu? “É muito alto”, “dói os ouvidos”, “você está incomodando os outros”, e por aí vai. Passei a assoviar baixo, a assoviar menos. Comecei a me distanciar dele para assoviar e mesmo assim isso me rendia algum tipo de punição: uma reprimenda, uma cara emburrada, um olhar de reprovação. Meu assovio, essa “pequenez”, virou um peso, bem como outras tantas pequenas enormes coisas em mim e de mim. Eu era um combinado de pesos a ser contido, controlado, “orientado”. Um conjunto de erros meio sem conserto.

Ontem, no parabéns sambado da amiga Carol, assoviei feliz meu contentamento por estar ali com ela. Ela me tocou o braço em sorriso e disse que sempre quis assoviar assim. “Eu te ensino” foi a minha resposta. É bom sentir que fiz as pazes com o meu assovio, tirei dele o peso colocado. Na verdade, já faz um tempo que venho fazendo as pazes com o que é meu, com minha voz, com meus mutantes seres e estares. Já faz tempo também que me permito falar desses issos. E parece ter chegado a hora de trazer essa liberdade para o lugar que mais me toca: a concretude da palavra escrita. Contar por escrito. Enfim.

sábado, 18 de janeiro de 2025

Que me livre

Havia esse leque de coisas que pareciam estar fora do alcance do esquecimento. Tanto que meu empenho nem morava no esquecer, mas em olhar para dentro, olhar ao redor e seguir em frente diferente. E só agora percebo tê-las esquecido, pelo menos em parte, de alguma forma significativa. Mas a verdade inusitada é que preciso delas de tempos em tempos, não mais para dar conta da cor daquela realidade e sim para entender os agoras. "Releia seus escritos", me disse P. naquele dia e, dessa vez, nem precisei reler. Os esquecidos me lembram dos meus porquês. A casa que criei, as escolhas, os tropeços, o sentido das rotinas mutantes. As contradições, a claridade incontestável, o que não sei mais não peitar, o que não alcanço (e nem quero), o que deixo ir. A reação ao que tenta me tirar de mim pelo controle, por vezes com ares bem disfarçados de afeto distraído. E preciso do esquecido para entender. Lembrar do que saí (e continuo saindo) para pisar livre. Eu que me livre. Me livro (nesse duplo sentido). E o que dói é parte menor.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

 Por que eu amo a Fal

"Tormenta

Ninguém pode ser o que você quer que ele ou ela seja, ou o que você precisa. As pessoas são o que são. Talvez elas se encaixem. Talvez não. Talvez você se encaixe. Talvez seja tudo uma grande besteira. Talvez o emprego apareça, ou as suas cutículas parem de doer, ou ele ligue duas, três vezes por semana só para saber como você está. Talvez você finalmente entenda aquele livro estranho, talvez um filme com o Kevin Kline salve você, talvez você se dê conta de coisas muito apavorantes durante uma madrugada muito triste. Talvez a sua alergia misteriosa se manifeste mais violenta do que nunca. Talvez você acabe bebendo vinho rose numa taça linda ou andando num carro sem capota com o Miltão ou num consultório médico recebendo notícias horríveis.

Talvez haja um fim.

Talvez não.

Quando Claudel disse há algo de ausente que me atormenta, ela não se referia só às chances que não alcançava por ser mulher num mundo de homens, ao amante casado que jamais seria dela, ao seu próprio talento (que era imenso). Ela não se referia apenas ao que nunca é o que desejamos ou esperamos de nós mesmos, ao amor, à felicidade, ao tempo, à grana, à liberdade.

Sempre acho que Claudel se referia fundamentalmente a si mesma. Nunca estamos, real e definitivamente. Não de verdade, não sempre, não, não.

O algo de ausente que sempre falta somos, ao fim e ao cabo, nós mesmos. Eu para mim, você para você.

Estamos, nós, minha voz anasalada e irritante, sua voz grave e doce, nossa coragem, nosso mover de mãos, peito, pelos, unhas, lábios e suas pelinhas, dentes e aquele quebradinho do dente, mamilos, unha do dedão, dedos dormentes, boceta, pontas mastigadas do cabelo e olhos que embaçam, estamos, todos, em falta conosco, distantes, meio apagados, meio longe demais, ausentes.

Nunca estamos, nunca estamos o suficiente em meio à tormenta dos dias, das dores, das graças, dos sins.

Nós nos atormentamos a nós mesmos e nos faltamos e nos faltamos."

Fal Azevedo 

domingo, 5 de janeiro de 2025

 "A assinatura de todas as coisas"

Livro. Livro é coisa outra que é livro mas é mais. Porque se expande para além da história no papel, abre esse portal imagético automático e quase inexplicável. O livro dita o escrito e você cria caras, roupas, ruas, movimentos. Inventa sem pensar o tom do diálogo, a voz que fala, o silêncio que ouve. E sente a umidade da gruta, a textura aveludada do musgo, o cheiro na nuca, a angústia e o amor de quem "nem existe". E ri e chora e vira refém da história pra depois ficar meio órfã quando ela acaba. Um livro é mais que uma história contada. E consegue ser ainda mais se se põe a caminhar, ganhar mundo. Aí, quem de novo o lê conhece a leitura de quem já o leu. Não só por traços, grifos ou palavras soltas de canto. Mas por que ali se conecta com idos olhos atentos, com a impressão invisível dos dedos nas folhas, com o barulho do passar das páginas, com as pausas. Há toda uma energia vivida na leitura do outro que chega pra quem agora chegar. E essa beleza, esse encontrar, me toca. Tanto me toca que coloco sem dó meus livros pra girar e esse, a partir de hoje, é seu. Acho justo. Acho justo que você me leve nele, eu estando ali nas quatro vezes que o li. E leva de quebra também outros dez pares de mãos e olhos de gente querida que por ele passou. De alguma forma, quase inexplicável, eu o lerei contigo.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

 Acorde

"Uma discreta insinuação de interesse entre duas pessoas". Essa é uma das definições de flertar que mora no dicionário. Descrição simples de algo que de fato é simples, mas de certa forma complexo. E bem gostoso, sinto eu. Especialmente aquele que segue sem pressa, que não se limita a minutos antes de um beijo na mesa de bar. Falo do flerte que demora a se entender como tal, da dinâmica que vai mudando de jeito. Até que sabe-lá-o-que vira uma chave invisível e você percebe um interesse outro do outro e se olha pra descobrir se há interesse em si. Se sim, começa a dança. Dança que varia em ritmo e sobe em tons. Devagar. E talvez venha daí a complexidade que mencionei, desse movimento que se demora um cadinho na despretensão e desafia imediatismos. Do movimento que degusta o nascer e crescer das vontades ainda no campo da incerteza. Qualquer toque vira marcadamente um toque, o olhar vai aprendendo a se demorar, risos mais soltos, pausas, desconcertos. Pequenos frenesis. É o outro passear a língua pelos lábios enquanto você fala e você, por um instante, se perder no que estava dizendo. Pequeno frenesi. Prazer simples de sem mais acontecer.

Um sol. Um sol suspenso.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

 Poema oração para os dias todos

"De uma maneira ou de outra

é o tempo e a sua desenvoltura

nos proporcionando possibilidades de nos atrevermos

nos refazermos em movimento com o espaço

em pensamento e intuição com o próprio tempo.

É o meu existir em desfile aberto

por entre as existências todas.

É o tempo e a sua desenvoltura

renovando os estados de consciência

através das constantes travessias

das incessantes batalhas

que nos trincam as cascas

nos trocam as peles

amolecem o leito e o peito

e a cada passo fortalecem o coração.

No tempo e no espaço deixo rastros

deixo jeitos, deixo risos, deixo choros,

deixo histórias, deixo glórias, deixo perdas,

deixo sortes gastas e presentes do azar.

Deixo, deixo, deixo e deixo

até que minhas percepções acessem a fenda

um portal, um estreito laço entre as dimensões

onde meu espírito observa-se vívido e vivo

reconhece a si mesmo dentro de um corpo re-habitado

realmado, reamado e desarmado.

Pela resiliência que nos sorri

com a sabedoria dos saltos

e a experiência das quedas."

João Pedreira