quinta-feira, 5 de junho de 2025

Nada frágil 

Fala. Olha e fala. Se coloca, alinha essa estradinha aparentemente torta. Desenha seu querer em letra, seja pela boca ou pela caneta. Fala, tenta, é mais de boa do que você pensa. Descasca seus medos, joga seus sins. Usa sua voz, banca seus nãos. Um não bem bancado é mais que revolucionário. Fala. Põe seu azulejo colorido no meio do chão de cimento batido e vê o que acontece. Fala. Ou cala, vai, se preferir assim. O silêncio também é bonito do seu jeito, no seu claro imperfeito. O silêncio é vasto, morada de nós imaginários e espaços nada gastos. Então cala. Calar é mais regra que rebedia.

E, no fim do dia, 

até o que cala

fala

na pequena poesia

terça-feira, 27 de maio de 2025

"Margarita has a strange appeal..."

** Num passado já distante, lá pelas saudosas terras das Minas Gerais, conheci esse cara, T., que tinha aí umas questões de ordem psíquica e carregava nas costas uma história famosa. Ele estava no aniversário de uma prima quando, no meio da cantoria do parabéns, ouviu uma voz dizendo: é agora!. T. atravessou a sala correndo e pulou. Da sacada. Do décimo andar. E não, não morreu. A queda foi amortecida por um toldo da área de lazer do prédio e ele somente quebrou as duas pernas. Somente. Na boa, cair do décimo andar e quebrar as duas pernas é NADA. Pois sim. Lembrei dessa história do T. por que na semana passada minha mãe "quebrou as duas pernas". Na versão dela foram nove costelas, pulmão contundido, corte no cotovelo e hematomas mapa mundi espalhados pelo corpo. NADA para alguém que bateu em um caminhão. Em uma rodovia. E o caminhão foi arrastando o carro até atingir um poste que desterrou pegando o carro por baixo também. E não, ela não morreu nem sofreu lesões graves, irreversíveis. Tá aí tendo que ser vigiada para não fazer peripécias durante o repouso necessário. E, assim como T., tem agora essa história pra contar. 

** Saber compartimentar os diferentes aspectos da vida é uma arte, penso eu. Separar em caixinhas, rotular com letra bonita, organizar por ordem de importância e prioridade. Tudo muito claro, visual e certeiro, ali contigo. Nesse sentido, eu por vezes brilho, por vezes fracasso miseravelmente. E, no fim, não sei se faz diferença. Cê lá vi.

** Alessandra Orofino é uma gênia. Gênia. E a cada Calma, urgente parece mais articulada, precisa. Nada não, só pontuando obviedades.

** Adoro quando falo mal de algo, sou veementemente contra, brado "nuncas" enfáticos e depois vou lá, faço e gosto. Adoro. rs

** Eu ainda diria mais...

sábado, 17 de maio de 2025

"tô nem aí pra rolê, tô nem aí pra rolê"

** A frase acima cantada em coro entusiasmado no rolê (ói p'cê vê), frio cortante do invernico candango, gente dançante, mistura tipica asa norter e eu, novata ali, me perguntando quanto João Gomes é muito João Gomes. Ah, João Gomes 💛.

** Fazer amizade em fila de banheiro é um dos pequenos prazeres da vida que mais me apetece, na boa.

** Aceitação e perspectiva. Pepe Mujica morreu nessa semana e me peguei pensando muito na vida dele. Pensar no todo da vida dele trouxe a palavra "contentamento" para o meu já em curso processo de aceitação das coisas e foi um tempero bom. Quanto à perspectiva, E. me trouxe essa analogia que fez sentido e, sentido fazendo, decidi dar aquele conhecido passo pisando diferente. E pisar diferente mudou o passo. Bonito isso. 

** Um dia frio, um bom lugar pra ler um livro e Miranda July me faz exclamar um "Cê tá de sacanagem" em sorriso a cada 5 páginas. Delícia.

terça-feira, 6 de maio de 2025

 Maio


(o céu do chão do parque. sem filtros, por supuesto)

Fal e sua voz delícia começaram recitando Vinicius. "Suavemente Maio se insinua/ por entre os véus de Abril, o mês cruel/ e lava o ar de anil, alegra a rua/ alumbra os astros e aproxima o céu ". Eu, tola, nem sabia que Abril era notoriamente um mês cruel. Achei que tivesse sido alguma disjunção cósmica explosiva endereçada ao meu desatento e discreto umbiginho. E sinceramente não sei se a consciência da crueldade democrática de Abril me conforta ou me perturba mais. Enfim.
Brasília começou trazendo mudança na tardezinha do dia 1, cumprindo a cartilha maiana (?). Fez frio. Brasília sabe desfilar um Maio de noites e manhãs frias, dias de calor e ostenta os mais lindos céus azuis. Lindos. Paulinha e eu nos embrulhamos em casacos e capuzes e meias e seguimos sentadas em cadeiras de praia, proseando ao vento e observando as 12 crianças que brincavam espalhadas em um grupo só. Bonito isso. 
Eu sinto que só comecei mesmo no dia seguinte. Dois de maio é em Minas (ou pelo menos em Uberlândia) o dia mais doido do ano. Doidemai é como se lê e se vive o dia em minerês. E meu doidemai foi doidemai como eu escolhi: no meio do mato. Dia inteiro de trilhas, cachoeiras, prosas, silêncios, o som das passadas no cascalhinho do cerrado (amo) e o acolhimento único que só água corrente sabe dar.
Não sei o que será de Maio. Esperança não tem tido espaço entre as palavras de ordem que imperam (aceitação e perspectiva). Mas sei que ele começou.




sábado, 3 de maio de 2025

 Rupi Kaur 

     (os livros dela e o que já foi meu autorretrato)

Tarde de sábado, sol, friozinho. Margot observa, já sem enxergar, os filhos de mim inventando toda sorte de brincadeira com gravetos e subindo em árvores e me esquecendo soltos. Um novinho de bigode passa cantando alto, pisada firme, algo que desconheço mas cuja letra me leva para outro som, outro tempo e me faz fechar o livro um pouco para chegar lá. Quando se lê poesia, tudo e qualquer coisa parece poética. E com Rupi Kaur me sinto em mergulho na falta de água. Ela entrega escrita que afunda faca no peito, desce em zigue-zague e você sangra repetidamente a cada página. O ar me falta, engulo seco, fecho os olhos e sangro. Sangro feliz pelo que leio e sigo sangrando até ter que parar sem conseguir. E me vejo Kaur no murchar, cair, enraizar, crescer, florescer. Caso meu florescer com o dela, piso o mesmo terreno e vejo que queremos mundos parecidos, que lutamos parecido. Termino o livro meio de sangue trocado de sangue mesmo. Termino o livro com a língua afiada em palavra e pronta para imergir em outros jeitos de usar a boca. Inclusive para dizer seu nome. Rupi Kaur. 

quarta-feira, 30 de abril de 2025

terça-feira, 29 de abril de 2025

Trecho esparso sobre o amor

Ele falou o que me falou meio de canto mas em uma altura que não sei se quem estava perto chegou a ouvir. Só sei que disse o que disse e eu só entendi de fato quando saquei que música era aquela. Demorei uns segundos para voltar do susto da explicitude e disfarcei verbalmente. Mal, por sinal. Pensei ali se ele, como eu, é adepto da ousadia planejada e trouxe consigo a frase pronta de casa. Talvez. Ele ficou diferente: postura de satisfação, orgulhoso do feito, e olho baixo de claro arrependimento. Ambivalente. Eu fiz a egípcia (quero crer) e também fiquei diferente: lisonjeada pela certeza pouco surpresa de me ver parte do imaginário dele e incomodada por saber que esse é um terreno que tenho por regra não pisar. Ambivalente. Também. Ideal e nada ideal. ...........................................

Rádio Plutão 

segunda-feira, 28 de abril de 2025

 Por que eu amo a Fal

"Alguém a faz sentir-se viva quando alcançada pela luz?

A moça da canção do ABBA (pra mim vale a da Meryl) declara que, quando banhada pelas luzes dos holofotes (gostou do banhada?) não se sentirá triste porque alguém está em algum lugar da multidão e o olhar desse alguém a faz feliz. Ela canta por vaidade artística, ela canta para pagar as contas, mas ela canta para uma pessoa em especial. Mas uma pessoa especial, uma pessoa especial no meio da multidão, faz com que nossa cantorinha triste se sinta viva. Uma pessoa especial em meio à multidão.

É de se imaginar que seja recíproco, porque afinal de contas, a pessoa especial no meio da multidão está ali, a enfrentar la muchedumbre para assistir à apresentação da triste cantorinha banhada pelas luzes. Mas me entenda: é de se imaginar. Não é certeza. A tal da pessoa especial em meio à multidão pode estar no show por tédio. A pessoa especial em meio à multidão não tinha nada pra fazer e a triste cantorinha mandou um ingresso de presente — a tal da pessoa especial pode ser do tipo que não paga pra ver os shows da cantorinha. A tal da pessoa especial em meio à multidão pode até ter levado a pessoa especial dela, a pessoa que realmente ama, pro show da cantorinha triste. Por fim, a pessoa especial pode ter dito à cantorinha que ia ao show e não foi não. Vai ver, a pessoa especial em meio à multidão acha a cantorinha extremamente chata, mas, ao mesmo tempo, ter uma cantorinha triste extremamente chata ligando no meio da noite de Glasgow faz qualquer um, até a pessoa especial em meio à multidão que não dá a mínima, se sentir especial. E quem não quer se sentir especial?

Enfim, sobre a pessoa especial em meio à multidão pouco podemos dizer. Geralmente a pessoa especial em meio à multidão não está nem aí para o que a cantorinha triste, você ou eu sentimos.

*

Voltemos para a cantorinha.

Ela se declara menos triste, pois a pessoa especial em meio à multidão estará atenta, ouvindo seus trinados.

*

Nós que escrevemos, escrevemos para alguém: nossos leitores (não escrevemos para nossa família, não escrevemos para nossos amigos). Escrevemos para os nossos leitores. Quem são esses caras?

Se é que eles existem, digo.

*

Perdi um amigo, me machuquei e tomei um susto quase ao mesmo tempo. De longe, perder o amigo foi a pior das situações.

Esse era um amigo que não apenas gostava de me ler — a única coisa que faço na vida. Eu gostava imenso de escrever para ele e de escrever em qualquer lugar sabendo que ele ia me ler.

A morte dele me fez — ainda me faz, é tudo tão recente — inventariar com quem diabos estou falando e para quem diabos quero falar. Quando viramos escritores, somos ensinados, ensinamos a nós mesmos que devemos viver no mode Roberto Carlos – eu quero ter um milhão de amigos.

Não discuto com quem me diz Sim, quero alcançar as mais apartadas almas com o fulgor das minhas palavras.

Nesses dias, mais ou menos de molho, tou fazendo um inventário tão interessante quanto perigoso: estou escrevendo para quem? Não para que, mas quem? Pouco antes do meu amigo morrer, uma imensa escritora me disse que estava dando uma limada em quem a lê. Que está selecionando, na maciota, quem a lê e quando. Na hora só concordei, mas quinze dias depois, nunca uma declaração fez tanto sentido.

Para quem estou escrevendo? Não por que, mas para quem?

Daqui donde estou, embalada por questionamentos vários, tristezinhas miúdas, tristezona enorme, alguma decepção e partinhas soltas de ressentimento e surpresa, me pergunto se faz qualquer diferença ser lida por este e não por aquele, aliás, se faz qualquer diferença ser lida, aliás, se faz qualquer diferença deitar sobre o papel as palavrinhas minhas.

Não tenho resposta, não tenho solução, não vou recomendar a quem quer que seja escrever, não escrever, ler ou não, pensar ou não sobre isso tudo.

Mas a verdade é que a ideia de dar a última aula às dezoito horas, fechar o computador e comer e assistir séries até a hora de dormir tem me parecido muito sedutora. A desistência é sempre sedutora. E algumas coisas simplesmente querem que você desista delas."

Fal Vitiello de Azevedo

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" e nesse dia branco"

*** Aquele nozinho aqui do lado direito, que pega pescoço e ombro em fisgada e dói rígido, cuja terminologia científica é maternidade. Difícil para um cacete. Especialmente a tarefa hercúlea de viver batendo o pé para deixar claro que você, mãe, também é gente e não apenas função. Mais uma área da vida em que a gente tem que bater o pé para deixar claro que é gente. Na boa, difícil para um cacete.

*** Segunda rima com silêncio e algum respiro, mesmo que descompassado. E hoje, especialmente, gostaria que durasse meses.

*** O episódio 2 de The Last of us me lembrou o que me fez abandonar Game of Thrones. Mas tenho aqui pra mim que seguirei.

*** Sonhei esta noite que estava lendo um livro que não quero ler. Isso. Ponto. Só isso. O mais inútil sonho desses meus quase 49 anos. Valendo aqui da premissa (questionável) de que os sonhos têm alguma utilidade. 

*** No excelente "Canção para ninar menino grande", Conceição Evaristo usa várias vezes "cria" como o passado de crer. "Ela cria na chegada do dia em que...". E fiquei viajando na ponte com o "cria" de criar. Pois acreditar, crer, é algo que criamos na nossa mente e nos nossos sentidos. Crer é uma criação imagética. Crer É criar. Por isso "cria", como usa Evaristo, vai além, diz mais, se estende para o campo macio do poético. Bonito isso. 


sexta-feira, 25 de abril de 2025

Retórica 

E se o "Clube dos abandonadores da velha escola" fosse um mar de gente e não esse fiapo quase invisível de água corrente? Como seria?

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quarta-feira, 23 de abril de 2025

 "nada ficou intacto"

* Esse foi o pedaço de frase que me pegou quando tocou "Boa Noite" do Djavan no rádio do carro, de manhã, voltando pra casa. Ele fala ali do efeito de um amor arrebatador que chega mas eu senti em outro lugar: quando acontecimentos em série trazem uma espécie de crise que parece afetar os aspectos mais variados da vida. "Nada ficou intacto". Nada. Tudo mexido, repensado, rasgado, desfeito, refeito, redirecionado, mudado. Nada ficou intacto. É quase uma outra existência.

* Falzuca quer lançar a campanha "Isso não é amor, é desidratação" e eu digo amém, sista. Porque, né? Há casos em que só pode ser mente e corpo alterados por alguma desordem vital, na boa. rs

* A mulher que sou/estou vira e mexe (leia-se: quase diariamente) topa com a mulher que fui. Topada topada mesmo, na linha dedo mindinho no pé da mesa. Rola choque, grito, palavrão e leva um cadinho de tempo pra parar de doer, pra entender e eu lembrar que é o que acontece com quem muda sempre as coisas de lugar. Parte do processo em curso, mutante.

* Invasor bárbaro, encusiasta, negócio fechado, família adams, malásia, correntinha, pavão, focaccia, em comum. Nada não, só listando referências.

* Aí que o estado quase sólido de desesperança não era tão sólido assim. Foi se deixando permear por simplicidades. Por prosa e café sem pressa com Daia, por pé na grama e livro e sol e ducha gelada de faltar ar no parque, por Pri rompendo com planos para estar junto, por almoço que faz ponte para noite em casa de amigos onde se dança Bowie e Prince na sala e se canta Gal como se Gal fosse na mesa e se bebe gin em taça que parece um balde, por janta improvisada e risos precisos na casa de Paulinha, por White Lotus maratonada, por Alabama Shakes nos ouvidos. Por quietude. Por Conceição Evaristo e sua escrita phoda. Por áudios de rir e chorar da Fal. Pelo que vive. Pelo que se vive.

quinta-feira, 17 de abril de 2025

PORTARIA CGR Nº 1, DE 17 DE ABRIL DE 2025

Atribui novo significado a estar bem.

A PRESIDENTE DO COMITÊ GERAL DE RESSIGNIFICAÇÕES , no uso da competência que lhe foi subdelegada pela Portaria MTA nº 1, de 20 de maio de 2010, e o que consta no Processo Dossiê nº 130776.130776/1976-13, RESOLVE:

Art. 1º Instituir em caráter temporário e em regime de urgência o novo "bem". O novo "bem" transita em chão duro sem o uso de qualquer tipo de amortecimento e carrega doses consideráveis de seca aceitação. Possui coloração inidentificável, aspecto opaco mas, curiosamente, no fundo é transparente. Prescinde de pausa, chora pouco e mantém alto desempenho na execução das tarefas diárias. O novo "bem" rasga esperanças tolas, infantis, e se fortalece na convicção plena de que tudo não vai ficar bem. Abomina toda e qualquer forma de silêncio e musica (sim, do verbo musicar) todos os espaços ocupáveis. Dá merecido descanso a Noga Erez e abarca variações de algo por ele classificado (talvez equivocadamente) como punk rock. Canta alto todo o "Horses" da Patti Smith, dança sentado duas lado B do Talking Heads e explora Santigold. Ainda assim, o novo "bem" desconhece a graça das coisas e segue cru. Não apresenta características típicas do antigo bem, mas responde que está bem quando perguntam tudo bem. O novo "bem" não se sente só, tem amparo logístico e afetivo e valerá até que portaria posterior o torne sem efeito.

Art. 2º Este ato entra em vigor na data de sua publicação.

Izabela F. Cosenza

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Rádio Plutão 

Santi



segunda-feira, 14 de abril de 2025

"como dois e dois são cinco"

Chove um tanto lá fora. Chuva bonita, encorpada, contínua, com um ou outro som tímido de trovão. Chuva que faz uma a cor do céu. Um longo e único branco acinzentado. E eu, sem cor aqui dentro, não consigo me prender a nada. Como se mente e corpo estivessem sintonizados nessa frequência vaga, sem chiado. Trabalho sem trabalhar, leio sem ler, dirijo sem dirigir, malho sem malhar, como sem comer. E não, não estou afundada em um poço de tristeza ou outra emoção qualquer. Não é isso. Há dor, mas não é isso. Estou desligada, em off, atravessando os passos do dia. Um a um. Eu ausente. Preciso dar um jeito de descer com a Margot. Minha capa de chuva verde, guarda-chuvão e a capa de chuva rosa bonitinha e meio ridícula dela. Preciso trabalhar até as 19:30. Chuva de matérias aqui. Preciso não errar. Tipo de ato, seção, data de publicação. Básico, Izabela. Preciso higienizar as folhas para a salada, ralar cenouras. Preciso continuar nesse silêncio perene e vago, sem chiado. Branco acinzentado. Duas mortes em cinco dias. E eu perdi a cor. 


sexta-feira, 11 de abril de 2025

Rádio Plutão

Imersa com Noga no Aquário



"quero te dizer nenhum segredo" 

* Manhã, aula de bike indoor, no telão competição feminina na Bélgica e uma imagem aérea mostra uma capela cercada de verde por todos os lados com o escrito "Chapel of Steenbergen" no canto da tela. Por um segundo escapei sem pensar para outro tempo, outros tantos lugares e tanto que quase senti aquele cheiro específico. Quase. Mas não. 

* O que chega para ser escrito desconhece o tempo do relógio. E se chega no meio da madrugada traz consigo um imperativo de urgência, pois há chances abissais de ele cair no esquecimento se não cair no papel naquela exata hora. Nessa noite foi assim. Lá pelas 4 me veio o texto prontinho: início, caminho longo e encadeado, pausas, as repetições que imito da Fal (oi, Falzuca), fim que retoma o começo e, se não me engano, até um toque de pretenso humor no meio de uma prosa sobre luto. Não sentei para escrever e ele se foi provavelmente sem volta, o que tem tudo a ver com tudo. O que tem tudo a ver com o (des)embaraço do tempo.

* Alguém da vizinhança tem praticado sax nos fins das manhãs. E eu já me pego dando bom dia pro som. Bonito isso.

* Focaccia. E não falo aqui de pão. É meio que nome ou estado das coisas.

* Noga Erez faz folia em minha vida desde 2023 e tenho pra mim que estou compensando por todo o pop que não ouvi nos anos 90 (Alanis conta como pop, produção?). E tenho ouvido só e somente ela nos últimos dias. Tio Jorge morreu na quarta-feira. O Tio Jorge. Sigo um tanto desorientada desde então, sem conseguir colocar pra dentro ou pra fora, e Noga, de alguma forma, me ritma. Especialmente no aquário.

segunda-feira, 31 de março de 2025

"quero te dizer nenhum segredo"

*A biblioteca da meia-noite. A história é interessante, o livro foi bem escrito, mas me peguei, página a página, esperando por um sobressalto, uma pausa forçada que não chegou. Aquela frase, aquele parágrafo que te faz fechar o livro pra respirar. E você volta e relê o trecho dez vezes e copia no caderninho e fica se perguntando, maravilhada, como alguém escreveu AQUILO (pausa) DAQUELE JEITO (pausa). O lance não é a história, é quem conta a história. Isso faz toda a diferença. Aí sinto que sou tão bem acostumada à maestria poética de Fal Azevedo, Carla Madeira, Ana Suy (conta outra linha de história, mas entra lindamente no time), entre outras, que espero a delícia e o impacto do dito susto. Terminei "A biblioteca.." como quem come um pacote rosa de pipoca sem achar uma doce sequer. Mas, enfim, é um livro válido. A história é boa.

*Assistir à série "Adolescência" enquanto se lê "A vontade de mudar" da bell hooks abre pauta para dez sessões de terapia. Pra começar.

*Responsabilidade afetiva. É bonito na teoria e difícil pra cacete na prática. Requer uma escolha minuciosa das palavras, do tom da prosa. Requer ensaio. Requer lidar com taquicardia e mãos ridiculamente geladas para soltar um "queria te falar sobre como me senti ontem à noite" e seguir dizendo que não há interesse da sua parte, dando a real sem esquinas nem vãos. Difícil pra cacete. Mas aí o outro te escuta, se coloca, diz que tá tudo bem e te agradece pela sinceridade. Ói p'cê vê. No fim das contas, responsabilidade afetiva é bonito na teoria e na prática. Erasmo Carlos sempre soube: gente certa é gente aberta.

*"O pior é o que eu não contei" me fez gargalhar.

*Os filhos de mim abominam carnaval mas são dois ratos de biblioteca, graças às deusatudo. André veio me mostrar esse livro que pegou sobre um E.T. e contei pra ele que aquela era a história de um filme que eu havia assistido quando pitica, quando tinha a idade dele. Ele me olhou incrédulo. rs. Aí lá fomos nós três assistir ao "E.T. o extraterrestre" juntinhos e, putz, foi tão gostoso que dá pra escrever um livro sobre.

*Olha, se sentir incomodada e não ter que fingir que tá tudo bem é altamente libertador. Recomendo. Ainda que rolem cabeças. Ainda que seja a sua. Vale demais da conta.

*Põe um sorriso na minha cara. Nada não, só cantando. =)


sexta-feira, 28 de março de 2025

 Rádio Plutão 

morando no repeat 



quarta-feira, 26 de março de 2025

Acorde

Trouxe pouca coisa além da lembrança. A roupa do corpo, celular no bolso e chaves de lugar nenhum. Abriu sorrisos - um com algum pesar -, falou de alívios e da textura atrativa da falta de chão. Ele ali, pisando onde eu já pisei. Eu ali, escutando tranquila, como casa aberta de frente pra praça. Ali, os dois desatados de nós ouvindo de fundo a sonora nova de quem mudou de direção. Outras trilhas. E nos despedimos bem, cada um seguindo a sua.

Um Lá. Um Lá Bemol.

segunda-feira, 24 de março de 2025

(escrito há 1 ano, em 25/03/2024)

Meu pai morreu. Encerrei a ligação, dei a notícia a minha mãe e continuei a trabalhar, mas não me lembro de uma linha do que fiz. Avisei meu chefe e quem mais eu quis avisar, fechei a porta e apaguei por quase 3 horas. Acordei esquisita, meio seca, perdida. E perdida tive um tempo ali antes de buscar os meninos na escola. Meu pai morreu. Meu pai morreu e não posso discorrer sobre o quanto eu o achava admirável, dizer que nossa experiência juntos foi incrível. Não, essa não é a nossa história. E precisei chegar a idade adulta para entender que meu pai era um "homem do seu tempo" e entender o quanto desafiador deveria ser para ele ter uma filha como eu, que não via sentido algum nas atitudes típicas de um "homem do seu tempo". O que ele conhecia como relação era pra mim inaceitável, desrespeitoso; e o que eu propunha como relação era pra ele inaceitável, desrespeitoso. E assim passamos a vida, patinando no terreno do conflituoso ou indiferente. Sei que ele me amava e por vezes soube do meu amor por ele, mas a gente achava pouca brecha pra trazer esse amor para a prática. Com a chegada da demência, há alguns anos, comecei a demonstrar um ou outro afeto e ele também. Meu pai morreu. Meu pai morreu e tenho pra mim que fizemos nosso melhor, ainda que tenha sido pouco, ainda que pareça pouco. Meu pai morreu e eu que sou de gritar por ajuda e sofrer junto quero ouvir nada, dizer nada. Quero ficar quieta para tentar dar nome para o que sinto sem ser rasa, afoita, e chamar de "uma tristeza enorme" porque é outra coisa que não isso. Meu pai morreu e me escapa a palavra. E, de alguma forma, eu me escapo também. E sinto muitíssimo. 

domingo, 23 de março de 2025

Parecia brincadeira e meio que era. Ela passeava tranquila pelo corpo dele: as pontas, os meios, os pedaços óbvios, os cantos escondidos e intocados. Sem pressa. Sem pressa, mas não em silêncio. Ia contando coisas bobas, aleatórias, pelas quais sua pele já tinha passado. Contou da sensação da rocha quente no corpo gelado e molhado de cachoeira. Contou da gengiva que recebeu de volta dois dentes de leite numa queda. Contou da borda dos olhos que parecia sumir a menos 17° celsius. Tudo isso enquanto espalhava dedos, nariz, boca, língua, queixo pelo todo dele. Sem pressa. Até que chegou na tatuagem do braço e cravou os dentes com alguma força. Ele quicou assustado, susto bom, e se entregou em riso a aquele relaxado tenso. E ela também. Se entregou.

segunda-feira, 17 de março de 2025

 Por que eu amo a Fal

sábado, 15 de março de 2025

Retórica 

e se for isso? esse todo?


Nada leve

Faz bem umas duas décadas que eu digo basicamente a mesma coisa a cada brinde: saúde e leveza. Mas confesso que já há algum tempo a segunda palavra me sai meio que agarrada na garganta. Não pelo que eu quero que ela signifique, mas pelo que muitas vezes ela representa de fato. Uma quase máscara com outro significado escondido por detrás. Comecei a me tocar disso em um passado já passado (ufa), em um movimento de retomada de protagonismo no "meu vidinha" (idiossincrasia). Lá estava eu caindo no mesmo buraco de sobrecarga : trabalho + logística doméstica + cuidado com os filhos, me responsabilizando praticamente sozinha por um conjunto de coisas que deveriam ser compartilhadas. E, já desperta e consciente, manifestava constantemente meu desagrado e indignação diante daquela disparidade. Aí veio a pérola: o problema não era a situação em si, mas a minha "falta de leveza". Eu deveria viver daquele jeito, nadando na merda (perdoe meu francês), sem reclamar nem exigir mudanças. A "leveza" era estar agradável ao outro, independentemente de como eu realmente me sentia. Bacana, né?. Então que dia desses falava eu sobre incômodos latejantes com outra pessoa quando ela me interrompeu e disse: "Calma, Iza. Vamos manter um tom leve!". Taí, de novo, esse mesmo sentido distorcido. Na boa, se for para encarar a leveza assim, como mansidão incondicional, eu a dispenso de pronto. Pra vida. Não quero ser leve. Quero ser a expressão genuína dessa paleta variada de sentimentos que fazem parte do existir, inclusive incômodo, raiva, indignação, tristeza, irritação e por aí vai. E que minha voz e atitudes sejam o reflexo PLENO desses sentires, os meus sentires todos. Porque leveza para mim é estar conectada comigo mesma e ser sincera em relação ao que eu penso e sinto, sem que o outro seja a baliza avaliadora e limitante da minha fala. Para mim leveza não é mansidão , é plenitude.

Saúde e plenitude. Tim tim.


quarta-feira, 12 de março de 2025

segunda-feira, 10 de março de 2025

Miniconto sobre a falta

Ela sentiu nada. Percebeu a presença dele e continuou descendo as escadas inalterada. O sorriso de longe, o aproximar, o abraço alto e demorado, o contato com o corpo: um todo sem impacto. A conhecida suspensão virara um sereno sem, um vazio espontâneo e confortável. Ela tão não estava ali que até o cheiro dele passou despercebido. E pôs-se a pensar no quanto o desejo por vezes tem vontade própria. É capaz de sobreviver a intempéries colossais e também de sumir assim, sem aviso nem plano. Sumir. Ela sentiu claro o desejo ausente. E subiu de volta as escadas. Inalterada.


sábado, 8 de março de 2025

Momper

"Como na palavra, palavra, a palavra estou em mim". Era o início dos anos 80 e Caetano já cantava a pedra. Outras palavras. Cada um sabe de si e eu não sei de você, mas sinto essa necessidade febril por outras palavras. Não acredito em mudar o dado, o pré-estabelecido, usando os mesmos nomes. Porque penso que chamar o novo do algo antigo é uma maneira de desconhecê-lo, limitar o campo de criação, de transformação. A palavra nova abre espaço para outras construções que abre espaço para outras palavras e vai-se assim. Em movimento. E pouca coisa me interessa mais nesse momento do que dessignificar (outra palavra) ou mesmo ressignificar. Escolher outras dinâmicas e dar nome a elas. Escolher o nome das coisas descobertas, escolhidas. Bonito isso. E essa necessidade minha não vem de uma pretensa pompa literária ou ímpeto aventureiro. Longe disso. Ela grita porque não sei viver com as palavras que me foram ensinadas. Vivo mal, vivo pouco, me perco. Preciso de outras palavras para me ser e, mesmo que momentaneamente, nomear quem sou. E escrever.

domingo, 2 de março de 2025

 Não é pequenez 


E é. Mas não é. E é.  Cê tá com tempo? (Oi, Anelis Assumpção). E á, perguntinha: sua carne é de Carnaval?

Verdades (são sempre) contestáveis 

não importa onde quando como por quem. Se alguém clama "eu falei faraó" e você NÃO responde "ê, faraó", é indicativo de que está morto em vida.
pé de manga não dá jaca, dizem lá em Minas. Só que dá. Eu dei duas, Paulinha deu uma. As que querem seguir o som indefinidamente rua afora, ficar DENTRO da música, a um palmo da fanfarra e colocaram no mundo serumaninhos que acham o carnaval um quase transtorno. Sem mais.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Planeta em pauta

Vasculho as gavetas do escritório à procura de uma folha pautada. Sempre tive essa predileção pela pauta, desde criança, como se a linha fosse aconchego necessário para a palavra prestes a vir. Estou na casa da minha mãe, casa vazia, em um dia de folga. Folga por mim decretada para, entre outras coisas, ter tempo e espaço para o que é simples e essencial como uma folha pautada. Por que a vida vai tomando um ritmo tão automático que não ter tempo nem espaço vira rotina. É um conjunto de pequenas e grandes tarefas, pequenas e grandes programações dentro de um pote cheio até a tampa de variadas responsabilidades. Penso na Izabela menina, marcando com régua os cantos das folhas e traçando linha por linha, sem nem imaginar as responsabilidades que a vida traria. E é aí que eu paro. Paro por que sei que essas responsabilidades não são exatamente minhas, por mais que pareçam ser. Não vou discorrer sobre a origem do patriarcado nem sobre como vamos aprendendo a viver nesse pacote como se fosse o jeito certo, jeito único de se viver. Tem gente boa escrevendo e falando sobre isso desde antes de eu nascer. Quero falar sobre como eu percebo o sistema. Vem a mim essa imagem da mulher, que nasce gente, ser humano, mas aos poucos vai deixando de ser. Iluminação, cenários e maquiagem vão mudando em cada etapa para que essa transformação passe batida, não seja perceptível. E a mulher, que nasce gente, vai virando um satélite. Uma forma, uma função, cujo destino é não precisamente viver, mas orbitar. Orbitar: "estar, girar na esfera de ação ou de influência de; ligar-se a um centro de influência." Segue-se orbitando, então, em torno da logística familiar, dos filhos, da casa, do trabalho e, pasmem, em torno de outro adulto (?), que é seu parceiro. E, função que é, passa a ser a principal responsável por suprir a manutenção e as necessidades dos acima citados. É a lógica do sistema. Mas para mim essa lógica não faz sentido algum. Se fosse lógico, natural, não seria tão exaustivo, vazio, adoecedor e insustentável. É insustentável porque mulher não é satélite. Mulher é planeta. Um corpo celeste que nasceu para girar em torno de sua própria estrela, sua própria luz, sua própria essência, e traçar seu próprio curso. Eu, Izabela adulta, quando teci essa trama de ideias, senti que o pensamento tomou forma, saiu de mim. E me vi, fora de mim, claramente na mulher que nasci, no planeta que sou. Um planeta amarelo com rajadas de verde, roxo e vermelho, que deve é seguir pelas linhas que eu própria traçar no que para mim importa, no meu aconchego de pauta. E me senti forte, quente, plena. Plena para continuar lutando por um movimento que realmente tem lógica e não nos limita a orbitar em torno dos outros. Vejo muito mais sentido em sair do curso "esperado" e brigar para ser o que é. Brigar para ser quem eu sou . Mulher não é satélite. Mulher é planeta.

*escrito em 16 de junho de 2022

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Oníricos nº 3

Ontem à noite, você, mais uma vez. Era uma festa no Praia Clube, sambão, eu e Larissa. Você chegou meio cabeludo, meio bêbado, meio inconveniente, mas parecia se sentir em casa. E ali nos acompanhou pelas andanças e pequenos acontecimentos num misto alternado de ocupando todos os espaços e invisível por completo. Até que, em certo momento, você me levantou pela cintura com um só braço e me beijou. E esse beijo foi, sem dúvida alguma, o beijo mais insosso e vazio que já beijei. Ainda fiz o esforço de me concentrar nele, buscando algum sentido de encaixe, algum gosto, um tempero qualquer. Sem sucesso. Ruim. Comicamente ruim. Na boa, se é para invadir meu sonho e meu samba, faça a gentileza de me beijar propriamente. Beijo de bambear coxas e arrepiar pelos que nem tenho e de me sumir por um instante do ao redor e de mover águas em mim. Francamente. rs.

 Estrada e mato

domingo, 23 de fevereiro de 2025

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

 Hã, biloute?

*** gosto de dizer que quem tem filho pequeno não tem plano, tem intenção. Mas a verdade é bem mais ampla que isso. Quem está vivo não tem plano, tem intenção. É claro que a gente planeja, estrategiza (isso é um verbo válido, produção?), sonha, deseja. Mas uma mudança, às vezes externa e que foge completamente ao seu controle, chega e lá vai você se perder e recalcular a rota em condições ridículas de temperatura e pressão. Ridículas. Ridículas. Ridículas.

*** uma semana horrenda, horrenda, horrenda, horrenda. Tão horrenda que dá preguiça de caçar adjetivos melhores. Só repito os mesmos. Mas te digo, há uma vantagem de estar nesse ponto, no lustrar o fundo do poço com a cara. Pra mim, essa é a hora para as pequenas ousadias que normalmente me deixariam receosa, nervosa, sei lá. Eu tô tão ridiculamente (ói a repetição) na merda que eu só vou. Qualquer situação desconfortável vai ser nada perto do que já está rolando. Então vou. 

*** minhas incríveis amigas não têm o poder de me tirar da situação horrenda - completamente fora do alcance delas- mas elas vêm me visitar no fundinho horrendo, limpam minhas bochechas, fazem chá, trazem Van Goghs, leem pra mim, falam delas, gargalham, brilham ideias de estrada e mato. Incríveis. Incríveis. Amo loucamente. 💛

 Retórica 

Não é cortante a certeza de que tudo não vai ficar bem? De que tudo não vai dar certo no final?

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Trecho esparso sobre o amor

Eu converso contigo. Ocasionalmente. Acho súbito, não entendo bem o por que, mas converso com você. Assim: prosas eventuais, imaginárias, com pausas reticentes nas frases em que eu diria seu nome. Eu não conheço seu nome. Conheço sua capa, sua voz e sua vibe que passa, transita perto. Conheço seus bons dias, como você me olha e o efeito do seu olho no meu. Isso conheço. E tem algo ali, um chamativo, uma intensidade presente e, não sei, talvez contida. Não sei. Um algo que talvez toque algo adiado em mim.

domingo, 16 de fevereiro de 2025

Pele

Bonito o caráter expansivo da arte. O filme fala do livro que cita o espetáculo que menciona a autora que escreve sobre o quadro que te lembra a série na qual rolou aquele som, aquele som. É meio o poema do Drummond - "João que amava Teresa que amava Raimundo..." - e também na "Quadrilha" da arte os elementos diversos seguem entrando e se movimentando pela nossa história. 

Ouvi Letuce pela primeira vez em uma peça de teatro. Tocou "Potência" e eu fiquei simplesmente alucinada, memorizando partes para depois ir sedenta descobrir (e amar) que banda era aquela. Descobri Elizabeth Bishop lendo um artigo sobre Drummond e é dela meu poema favorito na vida. Daí ontem aconteceu algo do tipo. Assistia ao excelente, "Boa sorte, Leo Grande" quando entrou em cena uma cena de dança (ahh, as cenas de dança) e lá fui eu quase me desconectar do filme para mergulhar no som. Voltei a cena várias vezes, me levantei, dancei junto até sentir bem o que havia para sentir ali. Fiquei em dúvida se já conhecia a música porque a conhecia ou se só parecia ser conhecida pelo jeito macio de encaixar em mim. Viajei sem pressa naquela onda prazerosa até que enfim reconheci a voz. Brittany. Dois minutos de busca pelos sons do Alabama Shakes e lá estava ela , Always alright, me esperando. Veio certeira ao meu encontro para fazer casa no meu repeat. Através do filme. Acho isso bonito demais, esse encadeamento que a arte faz, esse juntar colorido de missangas no fio de um colar (oi, Mia Couto). Colar que desconhece fim e vai dando voltas festivas no pescoço, se espalhando, ocupando espaços do corpo. A arte compondo minha pele. Não me canso de achar bonito.

Ouça aqui

P.S. : Just in case you walk by here, there is a US tour going on, DC in september. Do yourself and the universe a favor and go, por favor. Obrigada, de nada. ;)


quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Impecável
"Tudo em linha reta
tudo combinado, previsto, controlado Dizia nunca ter sentido nenhuma inveja
Não se permitia nenhuma gula 
e engolia só a ira 
Preguiça, jamais 
Luxúria, nem pensar 
E de tanto temer o fogo 
congelou todos seus desejos 
Com vergonha do orgulho 
rebaixou suas alegrias
e o sorriso alheio lhe ofendia 
Mas nós, pecadores, que você tanto repudia e deseja 
te convidamos a brincar conosco nesse lamaçal 
Vem 
Talvez tenha chegado a hora de não ser mais tão impecável." 
Geni Nuñez

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Conversê

I: O Irineu existe???? 😱😱😱 Chocada

F: eu tava quase morta naquela padoca

 I: Ele nem sonha que é uma celebridade, tadico...

F: né, eu me pergunto se tenho direito de separar aquele homem da celebridade que ele merece

I: hahaha! Toda uma vida paralela, poética, cheia de melindres. E ele lá, só comprando pão.

F: ele tava tomando uma cynar

eram 7h15 da manhã

terno branco com camiseta branca

cynar

no balcão

eu sei que era ele

I: Joguei cynar no Google e GARGALHEI

Só pode ser ele, falzuquitcha

F: eu sei que era

I: E a gente só sonha em chegar lá, né? Desfilando elegância e cynar na padoca às 7:15 da manhã 

Algo a se sonhar

Um quase propósito na vida

Hahaha

Até lá você escreve sobre fins de mundos e eu escrevo trechos esparsos sobre o amor inspirados em 1- caras que eu não conheço e 2- caras que eu preferia não ter conhecido. Até a gente, enfim, pedir pro seu Manoel dois aperitivos de alcachofra no balcão da padoca. É um plano.

F: HAHAHAHAHAH ❤️ ❤️ liamo

I: Te amo, meu bem ♥️

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

 Com elastano

Rigidez. Quem cresceu em famílias que tinham o rigor como cartão de visita sabe bem o quanto esse tópico é sensível se escolhemos olhar para ele com o cuidado e a reflexão que merece. Por que se por um lado o rigor pode abarcar algum conforto, trazer regras firmes e com elas algum senso de segurança, por outro, parece inescapável que ele caia na intransigência e acabe flertando com a arbitrariedade.

Sei que regras são importantes e que viver a vida sem elas, solta na mão do palhaço (adoro essa expressão), pode nos afundar num caos completo. O lance, então, a meu ver, é se engajar no exercício hercúleo de ir buscando um equilíbrio entre o "dado como dado" e o "ó, pode ser diferente". Aí que dia desses flexibilizei uma regrinha minha (calcada em embasamento prático e pessoal, devo dizer. rs) e me senti bem feliz com a minha atitude. Ahh, por que deu certo, saiu como esperado, Izabela? Não. Êxito zero na empreitada, meu camarada. Uai, feliz "casdiquê" então? Por que eu me questionei, eu não encarei o diferente com olhos de estranheza e repulsa imediata. Eu trouxe o diferente para conversar com o que eu tinha como "certo". E, nessa conversa, eu vi brecha para maleabilidade, brotou um "vai que..." e me permiti agir fora do que tinha preestabelecido. O resultado não foi bom, mas a experiência foi boa. E não só pelo precioso exercício em si, de refletir e olhar além (oi, Nina), mas porque em outras situações já vividas flexibilizar deu super certo e boto fé que em outras que virão também dará. E está tudo bem se der ruim vez ou outra. O que eu não quero é cair no engessamento. Na rigidez que, no fim das contas, nos cega. Cega tirando nosso poder de escolha consciente e, acredito, nos deixando mais propensos a julgar negativamente o diferente, só por que não se encaixar no nosso jeito. A rigidez joga a gente no automático. E o automático é quase burro, fechado para mudanças. Fico genuinamente feliz por eu ter me aberto, ter me arriscado. E termino esse texto um tanto nada organizado citando os adoradíssimos Porcas Borboletas. Sigo sem medo de me molhar.

" Eu me fodi

   Tranquilamente

   Tô nem aí, eu sigo em frente

   Porque agora nessa vida

   Eu pretendo melhorar

   Se chover eu tomo chuva

   Com vontade de molhar."

"Infelizmente" é som delícia da banda Porcas Borboletas.

https://open.spotify.com/track/3lZi9haOBepJfyKrxUMTn8?si=VGeNdB-lRkWP0EWvijQLZA


quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

It takes two to tango


Adoro essa expressão. E não só pela sonoridade, esse encadeamento poético de Ts e o que faz a boca ao pronunciá-los assim seguidinhos. Adoro porque ela traz algo da dinâmica da dança para a dinâmica da vida. Pois assim como no tango, relacionar-se requer movimento, sintonia, presença. Requer incorporar (literalmente) o som e ter alguma dose de confiança para se mover de acordo com as esperadas mas imprevistas tempestades e calmarias, encaixes e desencaixes. Lembro bem dos meus tempos de dança de salão que, para as outras aulas -forró, salsa, samba, bolero- bastavam sapatos e roupas confortáveis. Para o tango não. Para o tango era salto, saia, collant, cabelo em coque, postura e parceria. Eram comuns exercícios com os olhos fechados ou vendados e danças inteiras com as luzes apagadas, no quase completo escuro. Era um exercício de entrega e presença. Sintonia. Mesmo que cada qual com seu passo diverso. E não vejo como estar presente se a dança não te move de fato. Se a música não te apetece, o ritmo não conversa contigo e os passos não te prendem em liberdade pelo salão, não há presença. Há desconforto. E ninguém tem que gostar da mesma dança ou querer dançar. Há aí uma infinidade de ritmos outros, possibilidades outras que podem te fazer mais sentido. Inclusive danças deliciosas que prescindem de parceria. Mas dança de dançar junto é com dois presentes. It takes two to tango. E às vezes na vida a gente é tão pouco atento que dança sozinho estando com outro. Ou seguem os dois em desgosto e desgaste tentando achar ritmo comum onde não existe mais. O entendimento do que é amor, amizade, respeito, responsabilidade, liberdade, ética relacional pode ser completamente diverso e naturalmente não vai encaixar em passo. Não há dança. São pés arrastados em tropeços contínuos. O tango é complexo de se dançar e é divino. Relacionar-se também. Mas precisa de dois. It takes two to tango. Hoje consigo enxergar isso com clareza e me sinto em treinamento no exercício de trazer essa percepção para a prática. Mas confesso que tenho pés e mãos e corpo inteiro com cicatrizes e uma ou outra ferida ainda aberta de tanto que me arrastei e me contorci pelo salão. Me machucava tentando encaixe em dança ruim pra mim ou tentando convencer o outro a dançar, só para garantir a ilusão de ser um par. Não mais. Talvez só agora eu esteja realmente aprendendo a dançar.


quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Primeira pessoa


Eu

Eu eu eu eu

Eu eu eu eu eu eu

Eu eu eu

Eu eu

Eu eu eu eu 

Eu eu eu

Eu eu eu eu eu

Eu


Isso não é poema.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

 Oníricos n°2


Entrei pela porta sem tocar a campainha e não me espantei com a quantidade de gente. Era a sua casa, mas não a casa que eu conheço. Da sala fui para uma varanda comprida que não existe e, a partir daí, lembro só de uma coisa ou outra. De brisa fresca, cortinas vermelhas, luz de fim do dia, burburinho gostoso de encontro festivo e de um bolo de chocolate no centro da mesa. Imaginei ser o aniversário da sua cria, pelo tanto considerável de criança espalhada ali. Até que você segurou meu braço, polegar em movimento, e disse meio de lado sem me olhar no rosto: "não vai embora, tá". Também sem olhar, mas sorrindo, respondi um macio "talvez". E ali ficou clara a sua questão em relação a quem eu fui e a minha tranquilidade em não ser mais. Acordei já fora do sonho e, ao abrir a rede social, lá estava você: vela soprada, bolo, comemorando seu aniversário na noite anterior.


 Hã, biloute?


*** Eu, que sigo firme me equivocando em relação às coisas, tinha pra mim que a blogosfera era agora esse campo em ruínas, inabitado, de folhas secas em movimento e vento uivante. Ledo engano. Há aqui gente que lê, que escreve e segue explorando as variadas trilhas palavreiras. Surpresa boa. Caiu por terra meu propósito primeiro de fazer daqui um diarinho secreto, mas tá valendo.

*** "Chega de passar a mão na cabeça de quem te sacaneia", Barão Vermelho cantou a pedra nos idos anos 80. A gente cantava inteirinha, dançava nas festinhas, colocava no LP pra rodar, mas só entendeu como possibilidade real e trouxe pra prática lá pelos 45 de idade. E quando eu digo "a gente", eu digo "eu".

*** Ch. talvez será lembrado com o cara que chamou Nietzsche de juvenil. E não por que eu concorde ou discorde (faz uma vida que eu não leio o distinto senhor), nem por que o comentário abriu toda uma prosa sobre como nós, indivíduos e nação, temos dificuldades em lidar com criticidades, mas por que a mí me gustan as pequenas ousadias, esses quase atrevimentos.

*** Geni Nuñez, no podcast O Estranho Familiar, brilha, brilha, brilha e brilha na sua fala. E termina lendo um poema dela que pelamordadeusa. Anotei no caderninho e leio todo dia. Todo dia. Putz que divino.

*** "O hábito torna suportáveis até as coisas assustadoras". Questões de português pra concurso sabem dos paranauês.

*** Escrevendo hã, biloute no MTA e ouvindo Cícero. Parece 2010 all over again, mas né não, né? :)

sábado, 1 de fevereiro de 2025

 "E pareceres contínuo"


Assisti a esse vídeo do Eddie Vedder em que ele lê um trecho escrito por Damien Echols antes de cantar Bob Dylan. E sim, o tempo não existe. Mas existe. Assim como o vento (eita, ói "O tempo e o vento" aí), que não possui um corpo visível mas a gente o reconhece no contato com as folhas que voam, no frescor que bate na nuca, no cabelo que bagunça como que por pequeninas mãos; o tempo também se faz material nas coisas. Eu o vejo imprimindo linhas no meu rosto, nas crianças que voltam diferentes a cada 4 dias com o pai, na mãe que virou minha filha. Vejo o tempo palpável na construção dos afetos, em abraços e beijos que se transformam. Também o vejo na concretude dos silêncios, no sentido de falta que vai se descolando de nós e some, mas nunca em um passe de mágica. Leva tempo. O tempo existe. E não existe, Damien tem muita razão, o tempo é só truque. Só existe o agora. Porque o que foi e o que virá são fugidios e só o agora é real no nosso campo de ação. Agora.


"Uma coisa que eu adoraria ter é uma ampulheta ou uma coleção delas. Algumas que medem minutos, outras que medem horas, outras que medem o dia inteiro. E relógios de pêndulo e relógios de bolso. O que mais gosto sobre o tempo é que ele não é real, está todo na cabeça. Claro que é um truque útil se você quer encontrar alguém em um lugar específico do universo para um chá ou um café, mas é tudo que ele é, um truque. Não existe passado, ele só existe na memória. Não existe futuro, ele existe apenas na nossa imaginação. Se nossos relógios fossem verdadeiramente precisos, a única coisa que eles diriam é "agora"."

Damien Echols 

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

 Sem ponto

Falzuca monotemática, obcecada pela finitude e eu imersa no emaranhado dos meios, dos (des)contínuos processos, dos acordes em arpejo. Menos por curiosidade e mais por questão de sobrevivência, meus olhos têm aberto holofotes para o entre das coisas. E aí tenho achado prazer. Tanto pela descoberta de entendimentos novos, ritmos outros, quanto por, na prática, me colocar mais entregue ao caminhar do que ao fim programado. Sinto que tira peso e julgamento dos processos incômodos e traz frescor e tempero aos macios. Mas não é algo automático. "Ticar" etapas cumpridas para chegar na meta pretendida é tão automático para quase tudo que é um exercício ir rompendo com esse modus operandi. Exercício às vezes confuso, às vezes cansativo, mas que tem feito sentido. Pra mim. Quem diria que nadar contra minha própria maré me traria o gosto de me deixar levar livre na correnteza. 

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

 Oníricos n° 1

Você apareceu bem no finalzinho e achei estranho. Mal te encontro na vida e de repente te vejo em sonho. Você se ajeitou em meio a sacolas de supermercado para me dar um abraço de oi, sorriu largo e conversamos sobre floradas de mel. Laranjeira, angico, cajuja, café. Outras pessoas chegaram, a prosa mudou de rumo e, não sei como, seu cheiro me veio na ponta dos dedos da mão. Fiquei ali, surpresa, sem saber o que sentir ou dizer. Mas acordei com vontade de escrever.

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

 Corre aqui, Gloria Steinem


Às vezes me pego descrente, bem descrente. Não me abala os ânimos, que continuam a querer e a agir e a me jogar em pensamentos impossíveis (impossíveis porque fora do campo tido como regra, mas não realmente impossíveis). Acredito no voo como meio e fim, mas o prático da vida é mais chão estático do que qualquer outra coisa. Descrente ao perceber ( e essa percepção é só minha?) que mulheres letradas, que se dizem feministas, aplaudem com vigor mulheres que rompem com os padrões de silenciamento e se expõem ao invés de se anularem, desde que seja à distância, da porta pra fora. Pagam pau para a escritora, a jornalista, a ativista, a personalidade que tem a coragem de sair da posição ensinada de "boazinha" e se manifestam com veemência, colocando limites, exigindo respeito. Aplaudem. Desde que seja da porta pra fora. Porque se for alguém próximo, uma irmã, uma amiga, em situação que haja envolvimento, a resposta vai ser choque e não aplauso. As mesmas mulheres que querem se livrar da prisão de ter que agradar o tempo todo, não aceitam a mulher que desagrada. De perto, no pouco que falam, te falam pra "deixar pra lá", deixar que o tempo resolva as coisas (leia-se, passar pano), abafar o que se sente e acredita, tudo em nome do "amor" e da manutenção das coisas como estão. Não se posicionam, não emitem opinião a favor ou contra, ninguém quer se indispor, correndo o risco de também desagradar (esse horror!). Elas acreditam que mulheres devem usar sua voz, erguer a voz (oi, bell hooks), mas se a mulher próxima traz à tona algo difícil de se ouvir, não há aplausos. Na prática, quem quebra a regra do silenciamento dos incômodos, peraí, ousou demais e só merece distância. Aí me pego descrente, me perguntando se a gente está evoluindo de fato ou se é só discurso pra sabe-se lá quem ver. Não sei. Não sei. E me pergunto também por que eu ainda me importo, se tenho clareza da dureza de se bancar e me banco. Eu me banco. Eu perdi o medo do chão. Acontece que não ter mais medo do chão não me livra do impacto da queda. Talvez por isso eu ainda me importe, por causa do impacto, do susto. Mas quero acreditar que, pela repetição que estou certa que virá, uma hora o impacto ganhe ares de pouso. Daí não vou mais me importar.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

 O assovio

Eu assovio alto. E assovio bem o assovio alto. Aprendi sozinha, quando criança, na casa da minha avó em umas férias Monte Carmelo. Eu me sentava naquela janela gigantesca e ficava ali por horas olhando o passar da rua e soprando molhado por entre os dedos. Até que um dia saiu som. Saiu som. E achei tão incrível o contato com aquele som novo, aquele som meu, que fui diversificando o jeito de assoviar, entregue ao misto gostoso de desfio e brincadeira. Só que meu assovio, que me dava prazer, era expressão de alegria, um abano de rabo de cachorro feliz, passou a ser uma questão já na vida adulta. Porque ele não gostava. E tudo bem ele não gostar, era para ser um problema dele e não meu. Mas, né, o QUE não era problema meu? “É muito alto”, “dói os ouvidos”, “você está incomodando os outros”, e por aí vai. Passei a assoviar baixo, a assoviar menos. Comecei a me distanciar dele para assoviar e mesmo assim isso me rendia algum tipo de punição: uma reprimenda, uma cara emburrada, um olhar de reprovação. Meu assovio, essa “pequenez”, virou um peso, bem como outras tantas pequenas enormes coisas em mim e de mim. Eu era um combinado de pesos a ser contido, controlado, “orientado”. Um conjunto de erros meio sem conserto.

Ontem, no parabéns sambado da amiga Carol, assoviei feliz meu contentamento por estar ali com ela. Ela me tocou o braço em sorriso e disse que sempre quis assoviar assim. “Eu te ensino” foi a minha resposta. É bom sentir que fiz as pazes com o meu assovio, tirei dele o peso colocado. Na verdade, já faz um tempo que venho fazendo as pazes com o que é meu, com minha voz, com meus mutantes seres e estares. Já faz tempo também que me permito falar desses issos. E parece ter chegado a hora de trazer essa liberdade para o lugar que mais me toca: a concretude da palavra escrita. Contar por escrito. Enfim.

sábado, 18 de janeiro de 2025

Que me livre

Havia esse leque de coisas que pareciam estar fora do alcance do esquecimento. Tanto que meu empenho nem morava no esquecer, mas em olhar para dentro, olhar ao redor e seguir em frente diferente. E só agora percebo tê-las esquecido, pelo menos em parte, de alguma forma significativa. Mas a verdade inusitada é que preciso delas de tempos em tempos, não mais para dar conta da cor daquela realidade e sim para entender os agoras. "Releia seus escritos", me disse P. naquele dia e, dessa vez, nem precisei reler. Os esquecidos me lembram dos meus porquês. A casa que criei, as escolhas, os tropeços, o sentido das rotinas mutantes. As contradições, a claridade incontestável, o que não sei mais não peitar, o que não alcanço (e nem quero), o que deixo ir. A reação ao que tenta me tirar de mim pelo controle, por vezes com ares bem disfarçados de afeto distraído. E preciso do esquecido para entender. Lembrar do que saí (e continuo saindo) para pisar livre. Eu que me livre. Me livro (nesse duplo sentido). E o que dói é parte menor.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

 Por que eu amo a Fal

"Tormenta

Ninguém pode ser o que você quer que ele ou ela seja, ou o que você precisa. As pessoas são o que são. Talvez elas se encaixem. Talvez não. Talvez você se encaixe. Talvez seja tudo uma grande besteira. Talvez o emprego apareça, ou as suas cutículas parem de doer, ou ele ligue duas, três vezes por semana só para saber como você está. Talvez você finalmente entenda aquele livro estranho, talvez um filme com o Kevin Kline salve você, talvez você se dê conta de coisas muito apavorantes durante uma madrugada muito triste. Talvez a sua alergia misteriosa se manifeste mais violenta do que nunca. Talvez você acabe bebendo vinho rose numa taça linda ou andando num carro sem capota com o Miltão ou num consultório médico recebendo notícias horríveis.

Talvez haja um fim.

Talvez não.

Quando Claudel disse há algo de ausente que me atormenta, ela não se referia só às chances que não alcançava por ser mulher num mundo de homens, ao amante casado que jamais seria dela, ao seu próprio talento (que era imenso). Ela não se referia apenas ao que nunca é o que desejamos ou esperamos de nós mesmos, ao amor, à felicidade, ao tempo, à grana, à liberdade.

Sempre acho que Claudel se referia fundamentalmente a si mesma. Nunca estamos, real e definitivamente. Não de verdade, não sempre, não, não.

O algo de ausente que sempre falta somos, ao fim e ao cabo, nós mesmos. Eu para mim, você para você.

Estamos, nós, minha voz anasalada e irritante, sua voz grave e doce, nossa coragem, nosso mover de mãos, peito, pelos, unhas, lábios e suas pelinhas, dentes e aquele quebradinho do dente, mamilos, unha do dedão, dedos dormentes, boceta, pontas mastigadas do cabelo e olhos que embaçam, estamos, todos, em falta conosco, distantes, meio apagados, meio longe demais, ausentes.

Nunca estamos, nunca estamos o suficiente em meio à tormenta dos dias, das dores, das graças, dos sins.

Nós nos atormentamos a nós mesmos e nos faltamos e nos faltamos."

Fal Azevedo 

domingo, 5 de janeiro de 2025

 "A assinatura de todas as coisas"

Livro. Livro é coisa outra que é livro mas é mais. Porque se expande para além da história no papel, abre esse portal imagético automático e quase inexplicável. O livro dita o escrito e você cria caras, roupas, ruas, movimentos. Inventa sem pensar o tom do diálogo, a voz que fala, o silêncio que ouve. E sente a umidade da gruta, a textura aveludada do musgo, o cheiro na nuca, a angústia e o amor de quem "nem existe". E ri e chora e vira refém da história pra depois ficar meio órfã quando ela acaba. Um livro é mais que uma história contada. E consegue ser ainda mais se se põe a caminhar, ganhar mundo. Aí, quem de novo o lê conhece a leitura de quem já o leu. Não só por traços, grifos ou palavras soltas de canto. Mas por que ali se conecta com idos olhos atentos, com a impressão invisível dos dedos nas folhas, com o barulho do passar das páginas, com as pausas. Há toda uma energia vivida na leitura do outro que chega pra quem agora chegar. E essa beleza, esse encontrar, me toca. Tanto me toca que coloco sem dó meus livros pra girar e esse, a partir de hoje, é seu. Acho justo. Acho justo que você me leve nele, eu estando ali nas quatro vezes que o li. E leva de quebra também outros dez pares de mãos e olhos de gente querida que por ele passou. De alguma forma, quase inexplicável, eu o lerei contigo.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

 Acorde

"Uma discreta insinuação de interesse entre duas pessoas". Essa é uma das definições de flertar que mora no dicionário. Descrição simples de algo que de fato é simples, mas de certa forma complexo. E bem gostoso, sinto eu. Especialmente aquele que segue sem pressa, que não se limita a minutos antes de um beijo na mesa de bar. Falo do flerte que demora a se entender como tal, da dinâmica que vai mudando de jeito. Até que sabe-lá-o-que vira uma chave invisível e você percebe um interesse outro do outro e se olha pra descobrir se há interesse em si. Se sim, começa a dança. Dança que varia em ritmo e sobe em tons. Devagar. E talvez venha daí a complexidade que mencionei, desse movimento que se demora um cadinho na despretensão e desafia imediatismos. Do movimento que degusta o nascer e crescer das vontades ainda no campo da incerteza. Qualquer toque vira marcadamente um toque, o olhar vai aprendendo a se demorar, risos mais soltos, pausas, desconcertos. Pequenos frenesis. É o outro passear a língua pelos lábios enquanto você fala e você, por um instante, se perder no que estava dizendo. Pequeno frenesi. Prazer simples de sem mais acontecer.

Um sol. Um sol suspenso.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

 Poema oração para os dias todos

"De uma maneira ou de outra

é o tempo e a sua desenvoltura

nos proporcionando possibilidades de nos atrevermos

nos refazermos em movimento com o espaço

em pensamento e intuição com o próprio tempo.

É o meu existir em desfile aberto

por entre as existências todas.

É o tempo e a sua desenvoltura

renovando os estados de consciência

através das constantes travessias

das incessantes batalhas

que nos trincam as cascas

nos trocam as peles

amolecem o leito e o peito

e a cada passo fortalecem o coração.

No tempo e no espaço deixo rastros

deixo jeitos, deixo risos, deixo choros,

deixo histórias, deixo glórias, deixo perdas,

deixo sortes gastas e presentes do azar.

Deixo, deixo, deixo e deixo

até que minhas percepções acessem a fenda

um portal, um estreito laço entre as dimensões

onde meu espírito observa-se vívido e vivo

reconhece a si mesmo dentro de um corpo re-habitado

realmado, reamado e desarmado.

Pela resiliência que nos sorri

com a sabedoria dos saltos

e a experiência das quedas."

João Pedreira